Penny Bloods - O Horror Urbano na Ficção de Massa Vitoriana - Dissertação de Mestrado - Karina dos Santos Salles - Literatura (2024)

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

INSTITUTO DE LETRAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS

KARINA DOS SANTOS SALLES

PENNY BLOODS: O HORROR URBANO NA FICÇÃO DE MASSA VITORIANA

NITERÓI

2015

KARINA DOS SANTOS SALLES

PENNY BLOODS: O HORROR URBANO NA FICÇÃO DE MASSA VITORIANA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Letras da Universidade Federal

Fluminense, como requisito parcial à obtenção

do título de Mestre em Letras.

Área de Concentração: Estudos de Literatura.

Subárea: Literaturas Estrangeiras Modernas.

Orientador:

Prof. Dr. André Cabral de Almeida Cardoso

Niterói, RJ

2015

Ficha Catalográfica elaborada pela Biblioteca Central do Gragoatá

S168 Salles, Karina dos Santos.

Penny bloods: o horror urbano na ficção de massa vitoriana / Karina

dos Santos Salles. – 2015.

152 f.

Orientador: André Cabral de Almeida Cardoso.

Dissertação (Mestrado em Estudos de Linguagem) – Universidade

Federal Fluminense, Instituto de Letras, 2015.

Bibliografia: f. 141-152.

1. Ficção inglesa. 2. Cultura de massa. I. Cardoso, André Cabral de

Almeida. II. Universidade Federal Fluminense, Instituto de Letras.

III. Título.

CDD 820.9

KARINA DOS SANTOS SALLES

PENNY BLOODS: O HORROR URBANO NA FICÇÃO DE MASSA VITORIANA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Letras da Universidade Federal

Fluminense, como requisito parcial à obtenção

do título de Mestre em Letras.

Área de Concentração: Estudos de Literatura.

Subárea: Literaturas Estrangeiras Modernas.

Defendida em 31 de março de 2015.

BANCA EXAMINADORA

___________________________________________________________________________

Prof. Dr. André Cabral de Almeida Cardoso – UFF (Orientador)

___________________________________________________________________________

Profª. Drª. Carla de Figueiredo Portilho – UFF (Titular)

___________________________________________________________________________

Profª. Drª. Elisa Lima Abrantes – UFRRJ (Titular)

___________________________________________________________________________

Profª. Drª. Sonia Regina Aguiar Torres da Cruz – UFF (Suplente)

___________________________________________________________________________

Prof. Dr. Anderson Soares Gomes – UFFRJ (Suplente)

Niterói

2015

A todos aqueles que, sem muita certeza de

quando ou por quê, se percebem fascinados

pela insólita literatura vitoriana.

AGRADECIMENTOS

À CAPES, pela concessão de uma bolsa de estudo que me proporcionou a segurança

financeira necessária durante o curso de mestrado e possibilitou o acesso a materiais de

qualidade para o desenvolvimento desta pesquisa;

À PROAES – UFF, por ter atendido à minha solicitação de passagens aéreas e, assim,

viabilizado minha participação em um congresso internacional que certamente acrescentou

pontos positivos a esta pesquisa e à minha experiência profissional;

À UFF, por ter me acolhido tão bem desde o início e me presenteado com aprendizagem e

conhecimento ao longo de tantos anos de formação acadêmica;

À professora Carla Portilho, por ter feito ótimas contribuições para esta dissertação através

dos cursos mais divertidos e “sangrentos” da pós-graduação e aberto um espaço durante suas

aulas para que eu mostrasse um pouco mais do meu trabalho;

À professora Sonia Torres, por ter me dado uma das palavras-chave desta pesquisa sem que

eu percebesse de imediato quando ministrou um curso sobre literatura gótica durante minha

graduação e por sempre dar apoio a seus alunos;

Ao professor André Cardoso, por ter me admitido de bom grado como sua primeira

orientanda de mestrado, demonstrando interesse e confiança em meu trabalho, mas

principalmente por ter acompanhado a elaboração desta dissertação com olhar atento e

comentários valiosos;

Aos queridos amigos Pedro Pone, Marcia Heloisa, Danilo Tavares e Marina Pereira, que

fizeram desse processo uma jornada muito mais leve e ainda mais enriquecedora com o

carinho, a inteligência e o bom humor de sempre;

À amiga Laís Curvão, pela revisão minuciosa deste trabalho.

A Daniel Malafaia, pelo cuidado e pelo companheirismo em todas as horas.

Literature and fiction are two entirely different

things. Literature is a luxury; fiction is a

necessity.

G. K. Chesterton

RESUMO

Esta dissertação busca analisar como o horror se apresenta na ficção de massa

produzida durante a era vitoriana na Inglaterra, mais especificamente a que se enquadra em

um subgênero do romance vulgarmente conhecido como penny blood. Para cumprir esse

propósito, duas obras representativas desse subgênero foram escolhidas como objeto de

estudo: The Mysteries of London (1844-1848), de G. W. M. Reynolds, e The String of Pearls:

A Romance (1846-1847), de autor anônimo.

Nesta pesquisa, aborda-se a penny blood como uma das formas inauguradoras da

ficção de massa, uma vez que ela surgiu a partir da combinação de fatores como a

urbanização, a alfabetização em massa e o crescimento do mercado editorial e se caracterizou

pela publicação extensiva de histórias sensacionalistas com o objetivo de atender à crescente

demanda por leitura de entretenimento da classe trabalhadora e de produzir uma cultura

impressa acessível e barata. Além disso, considera-se a penny blood como uma narrativa que

se expressa por meio do gótico urbano, retratando a cidade como um lugar dominado pelo

submundo do crime e povoado por vilões monstruosos. Desse modo, a penny blood,

transpondo o horror para a cidade, refletiu certas ansiedades da sociedade vitoriana

concernentes ao novo espaço urbano que se desenvolveu tão rapidamente ao longo do século

XIX.

Palavras-chave: penny blood, literatura vitoriana, ficção de massa, gótico urbano.

ABSTRACT

This dissertation aims to analyse how horror is represented in the popular fiction that

was produced during the Victorian era in England, especially in the subgenre that came to be

known as the penny blood. To this end, the selected body of work comprises two romances

that have been considered typical of this subgenre: The Mysteries of London (1844-1848), by

G. W. M. Reynolds, and The String of Pearls: A Romance (1846-1847), by an anonymous

author.

In this research, the penny blood is claimed to be one of the earliest forms of popular

fiction, for it emerged from a combination of factors such as urbanisation, mass literacy and

the development of the publishing market, and it was also characterised by the massive

publication of sensational stories catering to the growing demand for light reading by the

working class and creating an accessible, cheap kind of print culture. In addition, the penny

blood is studied here as a set of narratives that incarnates the urban Gothic, since it often

depicts the criminal underworld of the city and the monstrous villains that inhabit it. In this

sense, the penny blood, by placing horror within the city, reflected certain anxieties displayed

by Victorian society regarding the new urban space that developed itself so rapidly throughout

the nineteenth century.

Keywords: penny blood, Victorian literature, popular fiction, urban Gothic.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ........................................................................................................................

,

p. 20.

39 “Set the story back in the previous century; open the action with spectacularly foul weather; introduce a child

who is low-born and either an orphan or as good as one; have him corrupted into a life of crime; portray

several thieves’ dens and if possible a hideout in a cave; sprinkle the dialogue with low-life slang; add a plot

twist involving shady doings by the high-born (usually, unknown to all, a near relation of the protagonist); and

finish with the central character managing against all odds to display true gentlemanliness, marry an heiress,

and reform on or just before the last page.” SCHWARZBACH, F. S. “Newgate Novel to Detective Fiction”.

In: BRANTLINGER, Patrick; THESING, William B. (Eds.). A Companion to the Victorian Novel, p. 230.

40 As façanhas desses dois criminosos foram narradas nos romances Rookwood (1834) e Jack Sheppard: A

Romance of the Robber-Hero (1839-1840), ambos de William Harrison Ainsworth.

41 PYKETT, op. cit., p. 20.

31

O crime também estava presente no romance sensacionalista, inaugurado na década

de 1860 pela obra The Woman in White (1860),42 de Wilkie Collins, embora não tenha sido

seu tema central. Lyn Pykett descreve o romance sensacionalista da seguinte forma:

[...] o gênero sensacionalista era um conceito jornalístico, um rótulo atribuído por

críticos a romances cujas histórias se concentravam em atos criminosos ou

transgressões sociais e paixões ilícitas e que “apelavam para os nervos” [...] Os

romances sensacionalistas eram contos da vida moderna que tratavam de confrontos

nervosos, psicológicos, sexuais e sociais e que tinham enredos complicados

envolvendo bigamia, adultério, sedução, fraude, falsificação, chantagem, sequestro

e, às vezes, assassinato.43

O sensacionalismo atribuído a esse tipo de romance seguia uma fórmula básica:

apresentar a corrupção e o escândalo como segredos da vida cotidiana de modo que, ao serem

revelados por debaixo das aparências moldadas pela moral vitoriana, provocassem sensações

diversas e intensas no público. Na vida real, esses tabus não eram discutidos abertamente, pois

geravam grande ansiedade, mas quando transpostos para ficção, eram extrapolados de tal

forma que, dizia-se, corrompiam o senso de realidade do leitor, sugerindo que a ficção era

mais empolgante que a vida comum e levando-o a crer que o mau comportamento era

excitante e atrativo. Uma das principais críticas feitas ao romance sensacionalista, porém,

vinha do fato de que os enredos se voltavam para as vidas domésticas das classes média e alta,

que foram tomadas de pânico moral ao se verem retratadas como classes essencialmente

degradadas.44

O romance sensacionalista vitoriano devia muito ao romance gótico do final do

século XVIII, principalmente por conta de suas narrativas chocantes e tensas. Havia, no

entanto, uma diferença básica entre eles: se naquele a reação emocional do leitor aos

escândalos era o choque moral, neste ela se traduzia em horror, que é uma reação de medo ao

que é ameaçador e desconhecido, conforme sucintamente apontado por Jerrold E. Hogle:

42 Apesar de o romance sensacionalista ter se consolidado cerca de duas décadas depois, o sensacionalismo já

podia ser percebido na penny blood e em alguns romances de Newgate, conforme afirma Anne-Marie Beller:

“[…] sensationalism permeated popular print culture throughout the earlier decades of the Victorian period, in

penny fiction and in the proliferation of new periodicals catering to the working classes.” BELLER, Anne-

Marie. “Sensation Fiction in the 1850s”. In: MANGHAM, Andrew (org.). The Cambridge Companion to

Sensation Fiction. Edição Kindle. Cambridge: Cambridge University Press, 2013, pos. 406.

43 “[...] the sensation genre was a journalistic construct, a label attached by reviewers to novels whose plots

centered on criminal deeds, or social transgressions and illicit passions, and which ‘preached to the nerves’

[…] Sensation novels were tales of modern life that dealt in nervous, psychological, sexual and social shocks,

and had complicated plots involving bigamy, adultery, seduction, fraud, forgery, blackmail, kidnapping and,

sometimes, murder.” PYKETT, op. cit., p. 33.

44 Ibidem, p. 34.

32

[...] uma história gótica geralmente se passa [...] em um espaço antiquado ou

aparentemente antiquado – seja ele um castelo, um palácio exótico, uma abadia, uma

prisão vasta, uma cripta subterrânea, um cemitério, uma fronteira ou uma ilha

primitiva, uma casa velha e grande [...] Dentro desse espaço, ou uma combinação

deles, escondem-se alguns segredos do passado (às vezes do passado recente) que

assombram os personagens de maneira psicológica, física ou de alguma outra forma

no tempo em que a história se passa.

Essas assombrações podem tomar várias formas, mas frequentemente assumem as

características de fantasmas, espectros ou monstros (que misturam peculiaridades de

diferentes reinos, especialmente da vida e da morte) que surgem de dentro do espaço

antiquado, ou às vezes o invadem partindo de um reino estranho, para manifestarem

crimes não resolvidos ou conflitos que não podem mais fugir à vista efetivamente. É

nesse nível que a ficção gótica geralmente oscila entre as leis terrenas da realidade

convencional e as possibilidades do sobrenatural [...] levantando a possibilidade de

que as fronteiras entre elas podem ter sido cruzadas, pelo menos psicologicamente,

mas também fisicamente, ou ambos.45

O horror se compunha ainda de outros elementos típicos, como o vilão e a donzela

em perigo, mas suas características iam além desses símbolos: o gótico estava intimamente

associado com um passado primitivo e bárbaro em contraposição a um presente civilizado,

procurando definir-se como detentor dos valores deste e distanciar-se daquele. Estranhamente,

contudo, o gótico identifica esse passado não civilizado como as fundações legítimas de uma

cultura há muito perdidas, o qual, por isso, seria mais poderoso que o presente civilizado. No

século XVIII, o termo “gótico” estava relacionado aos godos, povos germânicos considerados

bárbaros, mas que posteriormente serviu para se referir à herança nacional e cultural deixada

por eles quando invadiram a Inglaterra no século V. Em consonância com essa visão de um

passado não civilizado, porém vigoroso, o gótico passou a ser idealizado como uma das

origens da nação britânica.46

O romance gótico teve influências claras na ficção produzida entre as décadas de

1830 e 1860, especialmente na penny blood, que já compartilhava elementos dominantes de

outros subgêneros contemporâneos a ela, tais como a representação do submundo do crime

herdada do romance de Newgate, o excesso e as transgressões da vida doméstica que se

45 “[…] a Gothic tale usually takes place […] in an antiquated or seemingly antiquated space – be it a castle, a

foreign palace, an abbey, a vast prison, a subterranean crypt, a graveyard, a primeval frontier or island, a large

old house […] Within this space, or a combination of such spaces, are hidden some secrets from the past

(sometimes the recent past) that haunt the characters, psychologically, physically, or otherwise at the main time

of the story.

These hauntings can take many forms, but they frequently assume the features of ghosts, specters, or monsters

(mixing features from different realms of being, often life and death) that rise from within the antiquated space,

or sometimes invade it from alien realms, to manifest unresolved crimes or conflicts that can no longer be

successfully buried from view. It is at this level that Gothic fictions generally play with and oscillate between

the earthly laws of conventional reality and the possibilities of the supernatural […] raising the possibility that

the boundaries between these may have been crossed, at least psychologically

,

but also physically, or both.”

HOGLE, Jerrold E. “Introduction: the Gothic in western culture”. In: HOGLE, Jerrold E. (org.). The

Cambridge Companion to Gothic Fiction. Cambridge: Cambridge University Press, 2002, pp. 2-3.

46 PUNTER, David; BYRON, Glennis. The Gothic. Oxford: Blackwell Publishing, 2004, pp. 4-5.

33

manifestam no romance sensacionalista e as cenas ocasionais de violência do broadside. Ao

ser resgatado pela penny blood, porém, o estilo gótico tradicional sofreu um processo de

domesticação, mesclando-se com o momento da Revolução Industrial e do desenvolvimento

das cidades, e por isso ficou conhecido como o gótico vitoriano – ou gótico urbano, conforme

será chamado ao longo desta dissertação. David Punter e Glennis Byron, em seu compêndio

sobre o gótico, definem o estilo da seguinte forma:

O gótico vitoriano é marcado principalmente pela domesticação de figuras, espaços

e temas góticos: os horrores se localizam explicitamente dentro do mundo do leitor

contemporâneo. O vilão romântico do gótico se transforma à medida que monges,

ladrões e os ameaçadores aristocratas estrangeiros cedem lugar para criminosos,

loucos e cientistas. As ambientações exóticas e históricas que servem para distanciar

os horrores do mundo do leitor no gótico tradicional são substituídas por algo mais

perturbadoramente familiar: o mundo doméstico burguês ou a nova paisagem

urbana.47

Outros elementos presentes no gótico tradicional que foram transfigurados para a

nova realidade do século XIX incluem a donzela indefesa, que é constantemente perseguida e

perturbada pelo vilão, mas que, no gótico urbano, se torna qualquer pessoa (ou todo um

grupo) que simbolize a moral e a virtude; os castelos, que foram substituídos por prisões,

manicômios e pelos labirintos claustrofóbicos da cidade; o horror que assola os personagens

não é a aparição de um fantasma, mas sim o crime e a corrupção que se abrigam tanto no

espaço público quanto no doméstico.

A partir dessa convergência de subgêneros, a penny blood acabou formando um

estilo próprio: o gótico urbano, surgido em meio às transformações sociais e culturais pelas

quais passou a sociedade vitoriana, procurou articular a nova ordem social capitalista48 com o

discurso desse novo tipo de ficção popular, criando, assim, a evocação do horror característica

do subgênero, que será analisada nas obras The Mysteries of London e The String of Pearls: A

Romance ao longo dos próximos capítulos.

47 “Victorian Gothic is marked primarily by the domestication of Gothic figures, spaces and themes: horrors

become explicitly located within the world of the contemporary reader. The romantic Gothic villain is

transformed as monks, bandits and threatening aristocratic foreigners give way to criminals, madmen and

scientists. The exotic and historical settings that serve to distance the horrors from the world of the reader in

earlier Gothic are replaced with something more disturbingly familiar: the bourgeois domestic world or the

new urban landscape.” PUNTER; BYRON, op. cit., p. 26.

48 WARWICK, Alexandra. “Victorian Gothic”. In: SPOONER, Catherine; McEVOY, Emma (Eds.). The

Routledge Companion to Gothic. Oxon: Routledge, 2007, p. 33.

34

1.4 A penny blood e a inauguração da ficção de massa

A penny blood hoje é reconhecida por alguns críticos como uma das formas

inauguradoras da ficção de massa, principalmente por conta de seu formato acessível e barato

e de seu foco em um público leitor específico. Ao situarem as origens dessa categoria de

ficção no século XIX, David Glover e Scott McCracken, por exemplo, argumentam que

[...] é a aplicação das novas tecnologias da produção industrial à publicação, um

mercado em expansão impulsionado pelo aumento da alfabetização e da

urbanização, e a emergência de uma nova mídia comercial que, juntas, mudam

definitivamente as condições nas quais a ficção popular é criada.49

Nesse sentido, a penny blood foi fruto de uma intensa atividade comercial

desenvolvida nesse período, que favoreceu especialmente o mercado de ficção em expansão,

caracterizado sobretudo pela difusão em larga escala de jornais, revistas e periódicos cujo

foco eram histórias e romances publicados em série; entretanto, esse era um campo que ainda

gerava desconfiança entre os ideólogos culturais da época por representar um depauperamento

e uma comercialização indesejada da literatura, que, nesse contexto, perderia seu valor

artístico e se reduziria a um fabrico. Em sua análise sobre o papel da literatura nos estudos

culturais, Antony Easthope aponta para o fato de que o desenvolvimento da sociedade

capitalista fez com que a cultura na Inglaterra se baseasse em distinções de classes sociais,

tornando imperativo que a nova classe dominante se sobrepusesse por meio das ideias e

também da necessidade econômica; por volta da década de 1830, a cultura se dividia entre a

alta cultura da burguesia e a cultura popular da classe trabalhadora, e dessa forma, os valores

“respeitáveis” da burguesia buscavam dominar a “vulgaridade” do povo.50 Segundo ele, os

modos de produção do capitalismo foram fatores determinantes para essa divisão, pois “assim

como o trabalhador se torna cada vez mais alienado da produção e impelido ao mero consumo

no momento de lazer, a cultura popular se torna cada vez mais adaptada à produção de

mercadorias”.51

49 “[…] it is the application of the new technologies of industrial production to publishing, an expanding market

driven by increased literacy and urbanisation, and the emergence of new commercial media that together

decisively change the conditions in which popular fiction is created.” GLOVER, David; MCCRACKEN, Scott.

“Introduction”. IN: GLOVER, David; MCCRACKEN, Scott (Eds.). The Cambridge Companion to Popular

Fiction. Cambridge: Cambridge University Press, 2012, p. 4.

50 EASTHOPE, Antony. Literary into cultural studies. London: Routledge, 1991, p. 75.

51 “[…] as the worker becomes ever more alienated from production and propelled towards mere consumption in

leisure time, so popular culture becomes ever more adapted to commodity production.” Ibidem, p. 78.

35

Figura 2. Propaganda de um dos periódicos semanais publicados por Edward Lloyd.

Mas de que forma as penny bloods representariam essa comercialização da leitura?

Para começar, elas eram escritas por hack writers contratados que escreviam anonimamente

ou sob pseudônimos. Muitos deles não aspiravam a uma carreira literária sólida, por isso viam

sua ocupação apenas como uma forma de subsistência. O formato limitado das penny bloods

era bastante “econômico”: cada número tinha poucas páginas, com o texto dividido em duas

ou mais colunas e acompanhado de desenhos em xilogravura que ilustravam alguma cena

dramática ou perigosa da história (que serviam principalmente para chamar a atenção dos

leitores quando expostas). Além disso, elas eram encontradas não só em bancas de jornais,

mas virtualmente em qualquer estabelecimento comercial, desde tabacarias e docerias até

36

mercados de frutas e peixes.52 Todos esses aspectos reforçavam a ideia que se tinha desse

subgênero como um produto vendido para uma clientela vasta e indefinida, criando, assim,

um contraste direto com a noção de literatura como uma leitura edificante estabelecida pela

cultura da classe média.

Quanto a seus leitores, são eles os elementos que mais fazem da penny blood uma

publicação exclusivamente popular. Wilkie Collins se referiu a eles em um ensaio intitulado

“The Unknown Public”, publicado em 1858 na revista semanal Household Words, editada por

Charles Dickens. Ele afirmou que “os assinantes da revista, os clientes das distintas editoras,

os membros de clubes de leitura e de bibliotecas ambulantes e os consumidores e leitores

,

de

jornais e resenhas” não compunham mais a maioria do público leitor na Inglaterra, mas sim “o

público misterioso, incomensurável e universal de penny-novel Journals”,53 o qual ele dizia –

e temia – não conhecer:

Em primeiro lugar, quem são esses três milhões – o Público Desconhecido – como

ousei chamá-los? O público leitor conhecido – a minoria à qual já me referi – pode

ser facilmente descoberto e classificado. Há o público religioso, que tem livreiros e

literatura próprios [...]. Há o público que lê pela informação, e se dedica a Histórias,

Biografias, Ensaios, Tratados, Jornadas e Viagens. Há o público que lê pelo

entretenimento, e frequenta Bibliotecas Ambulantes e as bancas de ferrovias. Há,

finalmente, o público que lê apenas jornais. [...] Mas o que sabemos dessa maioria

enorme e proscrita – das tribos literárias perdidas –, desses três milhões prodigiosos

e esmagadores? Absolutamente nada.54

De fato, a alfabetização em massa e o desenvolvimento do mercado editorial foram

cruciais para o nascimento desse público leitor enorme e indefinido, promovendo uma espécie

de “democratização” da leitura que representava um progresso na cultura e na educação.

Entretanto, ela foi bastante criticada por uma parcela mais conservadora da sociedade

vitoriana. Antes de tudo, havia o preconceito arraigado dos leitores das classes média e alta –

o “público conhecido” – contra a literatura “barata”, cujo conteúdo “pernicioso” subvertia os

padrões culturais vigentes, ao contrário da literatura encontrada nas coleções de luxo e na

52 TURNER, op. cit., pos. 385-389.

53 COLLINS, Wilkie. “The Unknown Public”. Disponível em:

. Acesso em: 15 de março de

2014.

54 “In the first place, who are the three million—the Unknown Public—as I have ventured to call them? The

known reading public—the minority already referred to—are easily discovered and classified. There is the

religious public, with booksellers and literature of its own, […] There is the public which reads for

information, and devotes itself to Histories, Biographies, Essays, Treatises, Voyages and Travels. There is the

public which reads for amusem*nt, and patronises the Circulating Libraries and the railway book-stalls. There

is, lastly, the public which reads nothing but newspapers. [...] But what do we know of the enormous, outlawed

majority—of the lost literary tribes—of the prodigious, the overwhelming three millions? Absolutely nothing.”

COLLINS, op. cit.

37

biblioteca ambulante de Mudie,55 por exemplo. Eles acreditavam que a alfabetização em

massa havia capacitado as classes mais baixas para ler, mas não para distinguir a leitura “boa”

da “ruim”, o que acabaria diluindo a qualidade da leitura, pois os leitores da classe

trabalhadora – o “público desconhecido” – se limitariam a ler materiais de pouca

profundidade.56 Por isso Collins concluiu, de maneira um tanto indulgente, que esse público

mal tinha começado a aprender a ler, por conta de uma ignorância inerente à classe social à

qual pertencia.57 Na verdade, ao distinguir o público leitor entre “conhecido/culto” e

“desconhecido/inculto”, o que ele fez foi reproduzir uma segregação já existente relacionada à

distinção entre textos validados como cânone literário e textos pertencentes à cultura popular:

originalmente, a palavra “literatura” significava a forma da comunicação escrita em oposição

à comunicação oral, dando origem à oposição entre alfabetização e analfabetismo;58 assim,

para esse escritor, aparentemente, o “público conhecido”, que tinha acesso à literatura

“legítima” do cânone, era bem-alfabetizado, e o “público desconhecido”, que não tinha acesso

a ela, era praticamente analfabeto.

Além disso, presumia-se que a leitura, em vez de aumentar a produtividade e a

disciplina dos trabalhadores, como se deduziu na época em que a alfabetização em massa foi

instituída, geraria distração e preguiça (envolvidos pelas sensações e peripécias das histórias,

eles usariam as horas de trabalho, deliberadamente ou não, para continuarem suas leituras em

vez de se dedicarem a elas em seu tempo livre), bem como certo desrespeito à autoridade, no

pior dos casos (pois muitas histórias narravam situações em que personagens “rebeldes”

confrontavam a polícia e o magistrado diretamente). Dados coletados na época mostram que,

de fato, a alfabetização não representou uma melhoria significativa das condições de trabalho

da classe trabalhadora (já que grande parte das funções exercidas pelos empregados não

exigiam habilidade de leitura avançada), mas sim uma via de acesso ao entretenimento, visto

que a maior parte dos usuários das poucas bibliotecas públicas existentes no país era

composta de trabalhadores, que liam principalmente história e literatura em geral.59 Sobre

esse aspecto, Jonathan Rose complementa:

55 A biblioteca ambulante de Mudie era considerada uma das mais respeitáveis, visto que seu proprietário,

Charles Edward Mudie, costumava selecionar pessoalmente livros que teriam um alto teor moral. Para mais

detalhes, ver FLINT, op. cit., p. 21.

56 Essa era uma visão compartilhada tanto por comentaristas contra a alfabetização em massa quanto por alguns

romancistas, que, mesmo sendo a favor dela, admitiam temer esse efeito, conforme resumido por Patrick

Brantlinger: “While the growth of the reading public is a sure sign of ‘the progress to perfection’, that growth

nevertheless causes a decline in the general profundity and literary greatness of the culture of any nation in

which it occurs.” BRANTLINGER, op. cit., pos. 325.

57 COLLINS, op. cit.

58 EASTHOPE, op. cit., p. 7.

59 ROSE, op. cit., p. 37.

38

Na segunda metade do século, a renda [da classe trabalhadora] aumentou em 80-100

por cento, a carga horária diminuiu e [os trabalhadores] podiam comprar uma

coleção cada vez maior de jornais e revistas baratos. Todos esses fatores – mais

dinheiro, mais tempo, mais material impresso – tornaram ainda mais vantajoso

aprender a ler. O aumento da alfabetização, assim, se deu mais pela demanda

popular do que pela educação obrigatória [...].60

A preocupação demonstrada por Collins e por boa parte da sociedade com essa

massa de leitores diz respeito principalmente ao gosto compartilhado por eles. Os “árbitros”

dos padrões morais e culturais estavam sempre atentos às novas formas de cultura que

emergiam da vida cotidiana da cidade, aprovando entusiasticamente algumas, especialmente

aquelas que aspiravam a um status “respeitável”, e reprovando outras com dureza, ainda mais

quando estas interessavam às classes mais baixas. Desse modo, a qualidade da penny blood

era medida com base na classe social do leitor – que, para os padrões vitorianos, era o mesmo

que medir seu nível moral – e em menor grau pelo seu valor literário. Quanto a essa crítica ao

gosto popular, John Klancher observa:

A produção da alta cultura invoca a linguagem da “recepção”, a troca simbólica de

textos entre grandes escritores e leitores sensíveis e singulares. A produção da

cultura de massa gera o vocabulário mais rude do “consumo”, a relação de oferta e

demanda entre inúmeros escritores e públicos vastos e anônimos.61

A diferença entre recepção e consumo proposta por Klancher está estreitamente

relacionada à velha distinção entre o que é literatura e o que não é: conforme Easthope

observa, a apreciação da arte e da literatura depende de uma minoria pequena (a elite), e é ela

que mantém a tradição e a melhor “experiência humana” (isto é, as obras da literatura, que

geram uma resposta pessoal genuína no leitor e que são produzidas por autores individuais e

identificáveis) e que define os padrões do que é valioso e do que não é. Em suma, essa

minoria é a detentora de uma cultura

,

privilegiada, que se encontra em oposição direta à

cultura da maioria (a civilização de massa) e seus textos (produzidos de maneira coletiva e

60 “In the second half of the century, their real incomes rose by 80-100 percent, their work hours decreased, and

they could buy an ever-expanding array of cheap newspapers and magazines. All these factors – more money,

more time, more printed matter – made it ever more worthwhile to learn how to read. The rise of literacy, then,

was driven more by popular demand than by compulsory education […]”. Ibidem, p. 33.

61 “High-cultural production invites the language of ‘reception,’ the symbolic giving and receiving of texts

between great writers and singular, sensitive readers. Mass-cultural production yields up the harsher

vocabulary of ‘consumption,’ supply and demand among innumerable writers and vast, faceless audiences.”

KLANCHER, John. The Making of English Reading Audiences, 1790-1832. Madison: U of Wisconsin P, 1987,

p. 13 apud BRANTLINGER, op. cit., pos. 211.

39

comercial, eles são estereotipados, formulaicos e anônimos).62 Como se pode ver, a cultura –

tomada aqui no sentido genérico do termo – sempre tende a ser definida por meio de

oposições desproporcionais entre grupos sociais e suas ideologias, em que um, composto por

um número limitado de pessoas que se proclamam “letradas” e “cultas”, se sobrepõe ao outro,

formado por multidões tidas como “ignorantes” e “incultas”. Para as classes mais favorecidas

da sociedade, essas oposições desempenham um papel de barreira e de nível, separando sua

cultura “superior” de uma outra cultura, que é considerada marginal e “inferior”; para as

classes mais populares, contudo, elas podem funcionar como expressão de uma vontade

individual ou coletiva de que sua cultura se oponha deliberadamente à cultura dominante.63

Desse modo, tendo em vista que as penny bloods não se integram ao cânone, e

consequentemente não se enquadram à “verdadeira literatura” – pelo menos de acordo com

essa visão elitista e limitada sobre o que a literatura é –, elas podem ser consideradas como

formas de uma contraliteratura.

Em seu estudo sobre esse importante fenômeno cultural, Bernard Mouralis afirma

que a contraliteratura pode ser definida sob dois prismas: no plano da criação, ela surge “cada

vez que aparece num autor – que este exista nominativamente ou anonimamente,

individualmente ou colectivamente – ou, numa obra, uma recusa, mais ou menos

caracterizada, de se inserir em modelos literários institucionalizados”; no plano estatístico –

isto é, o da leitura – ela “permite ver que aquilo que é transmitido enquanto ‘literatura’ é

apenas um sector muito limitado ao qual é sempre possível opor todo o resto da produção

textual que não constitui o objeto de nenhuma transmissão oficial, mas cujo impacto no

público é muitas vezes enorme”.64 Aplicando o conceito da contraliteratura à penny blood,

pode-se ver que, de fato, ela se caracteriza como um modelo literário não institucionalizado,

uma vez que é produzida por escritores não consagrados ou muitas vezes desconhecidos e

difundida sob um formato de publicação não convencional – embora a serialização tenha se

firmado como uma opção válida, o formato tradicional do romance continuava sendo a

partição em três volumes; além disso, ela se propõe como um material de leitura bastante

acessível e popular, ao contrário da literatura de prestígio, tendo um alcance de público muito

maior. Mouralis argumenta, ainda, que os textos inseridos na contraliteratura, só pelo fato de

existirem e poderem ser agrupados, revelam a arbitrariedade com que são excluídos da

“literatura” e também questionam as premissas pelas quais esta se constrói. Em primeiro

62 EASTHOPE, op. cit., pp. 3-4.

63 MOURALIS, op. cit., p. 62.

64 Ibidem, p. 39.

40

lugar, eles recusam a noção de “obra literária”, isto é, uma peça da literatura celebrada como

expressão artística elevada; em segundo lugar, eles se apresentam como textos sem autores,

não porque estes sejam muitas vezes anônimos, mas porque a relação estabelecida entre texto

e leitor não precisa ser mediada pela referência a um autor específico, o que transforma o

texto em uma espécie de presença, e não um objeto de criação de um autor; finalmente, a

linguagem empregada nesses textos também é diferente, mais trivial e menos ornamentada,

reproduzindo ou não os estereótipos estilísticos da “literatura”.65 Em vista disso, a ideia que se

tinha na era vitoriana de que a ficção de massa – na qual a penny blood se inclui – reduzia a

literatura a um produto barato e de má qualidade parece um tanto exagerada: ainda que tenha

se promovido no mercado editorial por uma relação de procura e oferta, ela não representou

exatamente um depauperamento da literatura, mas sim o florescimento de uma produção

textual diferente da que era propagada e favorecida pela cultura dominante.

Depois, o que os “árbitros” culturais não viam – pois não se davam ao trabalho de

fazer uma leitura mais atenciosa e menos preconceituosa – é que, em vez de mostrar uma

visão distorcida da realidade e de valores morais, tal como eles pensavam, os enredos comuns

da penny blood indicavam certo conservadorismo. Assim como o romance popular, que se

originou na França durante o século XIX e se difundiu especialmente sob a forma do

folhetim, ela tende para um conformismo burguês, contribuindo para a defesa de ideias

conservadoras, tais como a valorização da moral e a condenação dos desvios de

comportamento (visíveis sobretudo na relação entre os heróis e os vilões das histórias, em que

aqueles triunfam sobre esses, o que sugere que a virtude sempre se encontra do lado da ordem

social), e, assim, traduzindo “os esforços desenvolvidos pela burguesia triunfante para

consolidar as suas posições face a uma classe operária que se torna cada vez mais objecto de

inquietação”, conforme Mouralis ressalta;66 além disso, novamente se assemelhando ao

romance popular, ela desempenha uma função lírica, apresentando o leitor a um universo

imaginário que se baseia em uma causalidade diferente da que rege o mundo “real” e

expressando-se através da narração linear e de um elenco de personagens e um tipo de

linguagem específicos, e também uma função de desvendamento do real, revelando a parte

escondida da sociedade (o subterrâneo, o esgoto e a sociedade secreta são elementos

recorrentes) e estabelecendo ligações ocultas entre os mundos “direito” e “avesso”.67

65 Ibidem, pp. 59-61.

66 Ibidem, p. 52.

67 Ibidem, pp. 53-54.

41

Esse conservadorismo da penny blood remete ao que Umberto Eco propõe como a

estrutura da consolação observada na ficção de massa. De acordo com ele,

[o] autor de um romance popular jamais encara problemas de criação em termos

puramente estruturais (“Como fazer uma obra narrativa?”) mas em termos de

psicologia social (“Que problemas é preciso resolver para construir uma obra

narrativa destinada a um vasto público e visando a despertar o interesse das massas

populares e a curiosidade das classes abastadas?”).

Esta seria uma resposta possível: tomar uma realidade cotidiana existente, onde se

voltam a encontrar os elementos de uma tensão não resolvida [...]; acrescentar um

elemento resolutório em luta com a realidade inicial, e que se opõe a esta como

solução imediata e consolatória das contradições iniciais. Se a realidade inicial for

efetiva e não contiver, em si mesma, as condições que permitam resolver as

oposições, o elemento resolutório deverá ser fantástico.68

Esse elemento resolutório é geralmente personificado pelo herói, um indivíduo (ou um grupo

de pessoas) que, movido pela bondade genuína e por um senso de justiça bastante forte, usa

de todos os meios que

,

estão ao seu alcance – alguns até um pouco fabulosos e forçados – para

solucionar ou pelo menos remediar a tensão que se faz presente nessa realidade (esses

detalhes ficarão mais claros nos capítulos seguintes através da análise das penny bloods

selecionadas). Eco ressalta que tanto a realidade quanto a resolução devem afetar o leitor,

chamar sua atenção e tocar sua sensibilidade; para isso, o enredo tem que distribuir as

informações de maneira inesperada, e para que o leitor se identifique com as personagens e as

situações antes e depois da solução, seus elementos característicos têm que ser repetidos até

que a identificação se torne possível em um processo contínuo de tensão e distensão.69

Através dessa repetição de informações e de soluções, que se encontram quase sempre

submetidas às expectativas e aos desejos do leitor, além da prenunciação exaustiva do que

está prestes a acontecer e do condicionamento das sensações,70 a ficção de massa acaba se

conformando com a ordem vigente e se tornando consoladora: seu intuito é propor uma

reforma na sociedade sem mudá-la completamente, pois se ela mudasse, “o leitor não se

reconheceria nela, e a solução, em si fantástica, parecer-lhe-ia inverossímil ou, em todo caso,

o impediria de experimentar um sentimento de participação”.71

Nesse sentido, a penny blood não constituía efetivamente uma arma subversora que

fazia as massas se voltarem contra as classes dominantes. Aliás, parte considerável da ficção

de massa era produzida pela própria classe média. Tal como Eco aponta, a cultura de massa é,

68 ECO, Umberto. Apocalípticos e Integrados. São Paulo: Perspectiva, 2011, pp. 190-191.

69 Ibidem, p. 193.

70 Ibidem, pp. 196-198.

71 Ibidem, p. 202.

42

antes de mais nada, produzida por uma elite de produtores que veem as massas como público

alvo, e não necessariamente uma cultura produzida pelas massas; a relação que se estabelece

nesse caso é dialética, entre um grupo culto de produtores e uma massa de fruidores, em que

“uns interpretam as exigências e as instâncias dos outros”.72 Atacando a penny blood, a classe

média pretendia depreciar o gosto popular por crimes e horror para manter sua posição

privilegiada de dominação ideológica e provocar pânico moral em relação à cultura das

massas.73

A penny blood representou de forma expressiva a cultura impressa consumida pela

classe trabalhadora e, consequentemente, a ficção de massa vitoriana, consolidando-se como

um gênero particular e rico ao seu modo. Inegavelmente sensacionalista, formulaica e

comercial, ela nunca se propôs como literatura inserida em altos padrões estilísticos e morais,

mas sim como ficção de entretenimento descomprometido e inofensivo. Críticas parecidas

com as que foram feitas a ela ressoam atualmente, direcionadas a livros considerados

populares (no sentido de “ruim”, “vulgar”). Se Neil Gaiman, escritor inglês de quadrinhos e

fantasia, tivesse vivido na era vitoriana, provavelmente não teria conseguido enunciar seu

discurso, que defende veementemente a leitura de ficção de entretenimento.

72 Ibidem, p. 54.

73 SPRINGHALL, John. “‘Pernicious Reading’? ‘The Penny Dreadful’ as Scapegoat for Late-Victorian Juvenile

Crime”. In: Victorian Periodicals Review, v. 27, n. 4, inverno de 1994, p. 329.

43

CAPÍTULO 2

Cidade de trevas e de luz: o submundo da corrupção e da desumanidade em

The Mysteries of London

Figuras 3 e 4. “A Ball at the Mansion House” e “Bluegate Fields”, de Gustave Doré. In: JERROLD, Blanchard.

London: A Pilgrimage (1872).

O pioneirismo industrial e a alavancada imperialista da Inglaterra tornaram-na o país

mais rico do mundo durante o século XIX. As grandes transformações sociais geradas por

esses dois fatores, brevemente explicitadas no capítulo anterior, não poderiam deixar de ter

impacto maior em Londres, que, apesar da relevância de outras cidades como Birmingham,

Manchester e Bristol na época, sempre foi o centro da vida política, administrativa,

econômica e cultural da nação. Desse modo, a capital inglesa serviu como um termômetro da

situação e do desenvolvimento do país inteiro, alcançando rapidamente o título de maior

cidade do mundo não só em termos de hegemonia, mas também de extensão.

O engrandecimento de Londres, mais do que refletir a prosperidade da Inglaterra,

representou sobretudo o surgimento da metrópole moderna. As fábricas, os lampiões a gás

que iluminavam as ruas, as ferrovias, as lojas e as oficinas tradicionais, os bancos e os

escritórios mantidos por profissionais liberais, as praças e os parques onde as pessoas

passeavam, os clubes e os teatros destinados à cultura e ao entretenimento, as escolas e os

museus foram alguns dos elementos que compuseram o novo espaço urbano desenvolvido

44

durante a Revolução Industrial e que fizeram da capital símbolo do progresso e da civilização.

No entanto, esses elementos vieram acompanhados de outros que mostravam a decadência

desse novo espaço, tais como a poluição gerada pela fumaça das fábricas e pela falta de

saneamento básico adequado, as ruas sem pavimentação, o comércio ilegal e as condições de

trabalho desumanas, as casas de jogos e os prostíbulos, os cortiços e as favelas74 onde as

classes mais pobres literalmente se amontoavam, os bares e os estabelecimentos onde se

realizavam rinhas com animais, os asilos75 e os manicômios.

Em O campo e a cidade, no qual discute as representações dos ambientes rural e

urbano na história e na literatura inglesa, Raymond Williams afirma que a oposição entre os

dois remonta à Antiguidade Clássica e se apresenta de forma ambivalente, o campo sendo

geralmente visto como “uma forma natural de vida – de paz, inocência e virtudes simples”,

mas ao mesmo tempo como “um lugar de atraso, ignorância e limitação”, e a cidade, como

“um centro de realizações – de saber, comunicações, luz” e também “lugar de barulho,

mundanidade e ambição”.76 A visão da última como um espaço onde avanço e incivilidade

coabitam atravessou os séculos e certamente incidiu em muitas cidades pelo mundo, mas

Londres foi talvez a que mais patentemente a corporificou na época dos eventos históricos

que levaram a Inglaterra ao seu apogeu. O processo de expansão e urbanização da capital se

deu por uma força centrípeta notavelmente acelerada, agregando várias aldeias adjacentes ao

seu território e atraindo um número massivo de pessoas que procuravam ou fazer parte da

cultura metropolitana ou ter mais oportunidades de emprego. Por um lado, isso contribuiu

para uma série de melhoramentos em sua infraestrutura e também para o seu embelezamento,

principalmente através da fundação de mansões e áreas de lazer; por outro lado, propiciou a

construção desenfreada e por vezes ilegal de habitações precárias em bairros miseráveis,

péssimas condições de vida e uma aglomeração absurda nas ruas labirínticas da cidade. O que

aconteceu em Londres foi, na verdade, um crescimento desordenado e insuficiente em si

mesmo – uma “excrescência” de uma organização social fechada e completa77 –, e grande

parte desse problema, de acordo com Williams, teria origem no velho conflito de classes

presente na cidade, pelo qual “a classe dominante queria desfrutar as vantagens de um

processo de transformação que ela própria estava promovendo e, ao mesmo tempo, controlar

74 Embora esses termos se apliquem em contextos especificamente brasileiros, escolhi usá-los porque são os que

mais se aproximam dos significados de tenements e slums, respectivamente.

75 Refiro-me a workhouse, lugar onde pessoas incapazes de se sustentarem sozinhas faziam trabalho braçal em

troca de moradia, comida e vestimenta, embora “asilo” não seja um equivalente preciso.

76 WILLIAMS, Raymond. O campo e

,

a cidade. São Paulo: Companhia de Bolso, 2011, p. 11.

77 Ibidem, p. 377.

45

ou suprimir suas consequências indesejáveis, porém inevitáveis”.78 Transformando-se desse

modo bifurcado, Londres acabou se tornando uma cidade dividida pelos extremos da riqueza

e da pobreza, que correspondiam basicamente ao contraste social entre o West End e o East

End que vinha se tornando cada vez mais evidente para cidadãos comuns e especialmente

interessante para artistas e escritores do período vitoriano.

As gravuras que abrem este capítulo, por exemplo, representam distintamente esses

dois polos da capital. A primeira mostra um baile na Mansion House, um casarão que

funciona até hoje como gabinete e residência oficial do Senhor Prefeito da Cidade de Londres.

Trata-se obviamente de uma ocasião especial e suntuosa, da qual participam somente

membros da alta sociedade inglesa; note-se que tanto os homens quanto as mulheres estão

elegantemente vestidos e têm uma postura altiva, o que pode ser facilmente interpretado como

um ar de importância e até mesmo soberba. Já a outra gravura retrata Bluegate Fields, uma

das piores favelas da cidade na época, conhecida por abrigar fumadouros de ópio e toda sorte

de criminosos.79 Apesar da aparência pouco discernível, observa-se que as pessoas são

maltrapilhas e parecem um tanto débeis, como se expressassem a dificuldade de viver naquele

ambiente, que é sujo, apertado e paupérrimo. Além disso, analisando as imagens lado a lado,

um elemento que chama a atenção é o efeito da luminosidade sobre a multidão: na primeira, o

espaço é tão iluminado que deixa as pessoas bastante nítidas, mas na segunda, ele é tão

obscurecido que por pouco as pessoas não se mesclam com ele. Essa era a situação da

complexa metrópole: enquanto o West End reunia palácios reais, lojas caras e luxuosas e

vários locais de entretenimento, exibindo a grandeza da cidade, o East End concentrava

fábricas, mercados de rua e favelas, escondendo sua sordidez. Não é à toa que a metáfora

usada frequentemente para se referir a Londres se apoia na oposição entre luz e trevas.80

Embora sempre tenham existido na cultura civilizada, os contrastes sociais presentes

no ambiente urbano aparentemente nunca haviam causado tanto impacto na consciência

coletiva antes da Revolução Industrial e da Revolução Francesa, cujos efeitos se espalharam

pela Europa e promoveram grandes mudanças no regime político, no sistema econômico e na

estratificação da sociedade em geral; à medida que elas progrediam, a diferença entre as

condições de vida das classes baixas e das classes altas foi se tornando cada vez mais gritante,

mas dar conta dela em sua totalidade demandava investigação aprofundada e exposição

78 WILLIAMS, op. cit., p. 247.

79 FISHER, Ed. “Bluegate Fields: A Summary”. Disponível em

. Acesso em 28 de dezembro de 2014.

80 O título deste capítulo, inclusive, foi inspirado no décimo nono capítulo de O Campo e a Cidade, intitulado

“Cidades de trevas e de luz”, que trata justamente das diferenças visuais e sociais entre essas duas áreas.

46

efetiva de cada um desses dois lados. Os avanços e as carências resultantes do crescimento

das cidades no século XIX, desse modo, inspiraram muitos escritores e jornalistas a

publicarem romances e tratados jornalísticos que abordavam a tensão gerada pelas

disparidades sociais. Como era de se esperar, o tema ganhou bastante destaque na Inglaterra,

particularmente em Londres, dando origem a obras como Life in London (1821), de Pierce

Egan, Oliver Twist (1837), de Charles Dickens, London: A Pilgrimage (1872), de Blanchard

Jerrold (para o qual o célebre ilustrador Gustave Doré fez as gravuras referidas

anteriormente), entre outras.

Algumas delas assumem um caráter de denúncia social, apontando e criticando os

problemas da realidade que se encontra à margem da sociedade londrina; outras tendem para

o entretenimento, comparando a vida confortável e geralmente extravagante da aristocracia

com o cotidiano difícil e carente dos trabalhadores. No entanto, seja pelo choque moral que

pretendia provocar nos leitores, seja pela excitação que as peripécias da trama lhes causavam,

a justaposição desses contrastes adquiriu ainda mais força ao ser apropriada pela ficção de

massa, despertando o interesse do imenso público leitor que vinha se formando nas classes

populares. Unindo crítica à sociedade e entretenimento não tão despretensioso, foi nesse clima

de transformação e de “novidade” que uma das penny bloods mais controversas e também de

maior sucesso no período vitoriano surgiu: The Mysteries of London (1844-1848), de G. W.

M. Reynolds.

Este capítulo se destina à análise dessa obra, reunindo aspectos relevantes sobre sua

publicação e mostrando como os elementos do gótico urbano se desenvolvem nela.

Primeiramente, faz-se um reconhecimento de seu autor, que foi não só um dos escritores mais

populares e polêmicos de sua época, mas também exerceu papel especial na propagação da

leitura de massa e na consolidação do gênero penny blood. Em seguida, fala-se um pouco de

seu enredo, definindo seu tema e identificando influências em sua elaboração. Por fim,

investiga-se de que forma ela representa o horror e se relaciona com o melodrama e o

sensacionalismo que vinham permeando a literatura vitoriana.

2.1 G. W. M. Reynolds: escritor, jornalista e porta-voz das massas

“Seus leitores sabiam que ele era Cartista, republicano, teetotaller, feminista,

filossemita e pró-árabe, porque ele dizia isso para eles, incansavelmente, em cada obra que

47

escrevia”.81 É isso que Dick Collins adianta sobre a biografia de G. W. M. Reynolds, um

homem notável que se tornou figura influente da ficção de massa produzida no período

vitoriano, mas que permaneceu esquecido por um bom tempo pelo público geral e pela

academia, sobrevivendo graças aos colecionadores de penny bloods e penny dreadfuls e aos

aficionados por literatura gótica. Diante desses fatos, é importante saber um pouco sobre esse

autor antes de analisar The Mysteries of London especificamente; esta seção, portanto, busca

dar conta de sua vida, com base nos relatos feitos por Anne Humpherys, Louis James e Dick

Collins, que mostram como ele era dedicado ao seu trabalho e como causava polêmica através

de suas opiniões.

Quando se pensa em um escritor representativo do período vitoriano, um dos

primeiros nomes que vêm à mente é Charles Dickens, levando-se em consideração a vastidão

e o sucesso que sua obra como um todo alcançou. Sem dúvida, as histórias que escrevia

atendiam a praticamente todos os gostos: embora considerada por alguns críticos muito

sentimental ou exagerada em seu retrato da sociedade londrina, grande parte delas era bem-

recebida pelo público leitor – sobretudo o “público conhecido” definido por Wilkie Collins e

que incluía a própria Rainha Vitória. Construindo uma carreira sólida como jornalista político

e escritor de “literatura respeitável”, ele permanece até hoje um autor clássico, assim como

suas obras, que caracterizam tão bem a Londres do século XIX guardada no imaginário

comum que “se impõem como inesquecíveis e [...] se ocultam nas dobras da memória,

mimetizando-se como inconsciente coletivo ou individual”, conforme Italo Calvino observa

sobre as obras clássicas.82

Contudo, apesar do renome e da popularidade incontestável de Dickens, o recorde de

venda, de público e de crítica, no que dizia respeito à ficção em prosa vitoriana, sem dúvida

cabia a G. W. M. Reynolds. The Mysteries of London é considerado o romance mais vendido

e mais lido do século XIX: vendeu cerca de quarenta mil cópias por semana já no primeiro

ano de sua publicação83 e logo se tornou um dos favoritos da massa de leitores da classe

média baixa e da classe trabalhadora. Incrivelmente

,

prolífico, Reynolds escrevia em média

mil palavras por dia; estima-se que The Mysteries of the Court of London (1848-1856), uma

continuação ainda mais longa da série mencionada anteriormente, tenha 4,5 milhões de

81 “His readers knew he was a Chartist, a Republican, a Tee-Totaller, a Feminist, a Philo-Semite and pro-Arab,

because he told them so, relentlessly, in every work he wrote.” COLLINS, Dick. “George William McArthur

Reynolds: A Biographical Sketch”. In: The Necromancer [1851-2]. Edição Kindle. Kansas: Valancourt Books,

2007, pos. 47-51.

82 CALVINO, Italo. Por que ler os clássicos. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 10.

83 GLOVER, David. “Publishing, history, genre”. In: GLOVER, David; MCCRACKEN, Scott (Eds.). The

Cambridge Companion to Popular Fiction. Cambridge: Cambridge University Press, 2012, p. 19.

48

palavras (o que equivale a quase cinquenta romances).84 Ao todo, publicou trinta e sete

romances, além de vários contos e artigos. Pelo menos em termos numéricos, foi um escritor

mais proeminente que Dickens, e ao longo de sua carreira, conquistou tantos leitores fiéis que

poderia ter se transformado em um autor clássico da literatura inglesa se tivesse obtido o

devido reconhecimento – bem como a aprovação das classes dominantes na época, que o viam

como um radical perigoso, um agitador da turba e um traidor de sua própria classe.85

George William McArthur Reynolds nasceu em Sandwich, Kent, no dia 23 de julho

de 1814. Sua família tinha uma longa tradição naval: seu pai e seu avô materno eram capitães

da Marinha Real Britânica e esperavam que ele seguisse o mesmo caminho, já que era o filho

primogênito. Em 1822, com a morte do pai, ele e seu irmão mais novo, Edward, ficaram sob a

responsabilidade de um guardião, Dr. McArthur. Perto de completar 14 anos, foi matriculado

na Royal Military Academy, em Sandhurst, mas saiu da instituição dois anos depois por

ocasião do falecimento de sua mãe – e, principalmente, por não mostrar interesse nem aptidão

para a carreira militar.86 Desde cedo, Reynolds costumava ler obras de autores como Thomas

Paine e Marquês de Sade, o que certamente moldou suas visões e suas atitudes em relação ao

sistema no qual a sociedade se organizava e o conduziu para a defesa ativa do Radicalismo.87

Nesse sentido, pode-se dizer que ir contra a vontade de seu pai foi o seu primeiro ato de

rebeldia contra a autoridade, um traço de sua personalidade que permearia toda a sua carreira

como jornalista e escritor.

Apesar do status trazido pelo serviço militar, sua família não era rica: seus pais lhe

deixaram uma quantia de dinheiro que mal chegava a £2,000 e que só seria liberada

totalmente em 1837;88 por isso, Reynolds teve de se virar por um tempo. De acordo com uma

declaração feita por Dr. McArthur e enviada ao Home Office da Inglaterra, Reynolds teria

cometido vários delitos e “imoralidades” enquanto jovem, incluindo roubar joias, trapacear

em jogos de azar, passar-se por outra pessoa e sair de hotéis sem pagar a conta. Essas

acusações, no entanto, parecem ter sido uma tentativa de difamá-lo, pois só surgiram quando

se tornou líder do Movimento Cartista em 1848.89 Como parte de sua tendência

84 KIRKPATRICK, op. cit., p. 73.

85 JAMES, Louis. “Foreword”. In: REYNOLDS, G. W. M. The Mysteries of London, Vol. 1. Edição Kindle.

Kansas: Valancourt Books, 2013, pos. 106-112.

86 HUMPHERYS, Anne; JAMES, Louis. “Introduction”. In: HUMPHERYS, Anne; JAMES, Louis (Eds.). G. W.

M. Reynolds: Nineteenth-Century Fiction, Politics, and the Press. Hampshire: Ashgate Publishing Limited,

2008, pp. 1-2.

87 COLLINS, op. cit., pos. 381-386.

88 Ibidem, pos. 277.

89 HUMPHERYS; JAMES, op. cit., p. 2. O Cartismo foi um movimento social atuante na Inglaterra entre 1838 e

1858 que visava à inclusão política da classe trabalhadora, especialmente no que se referia ao sufrágio

universal masculino e à participação de representantes da classe no parlamento.

49

questionadora, considerava-se deísta, e em 1832, escreveu um livro intitulado The Errors of

the Christian Religion Exposed, by a Comparison of the Gospels of Matthew and Luke e

publicado pelo editor Richard Carlile, conhecido por suas publicações subversivas.90 Poucos

anos depois, Reynolds decidiu trocar o conservadorismo inglês pela agitação social que ainda

fervilhava na França com as Revoluções de 1830.

Ao se estabelecer em Paris, rapidamente engatou sua vida pessoal e profissional: em

1835, casou-se com uma jovem inglesa chamada Susannah Frances Pierson, que

compartilhava seus interesses em literatura e política e com quem teve nove filhos; quando a

união aconteceu oficialmente, a moça tinha apenas 17 anos e já estava grávida de sete meses

do primeiro filho do casal.91 No mesmo ano, abriu uma pequena livraria que também

funcionava como sala de leitura e editora chamada Le Librairie des Étrangers, publicou seu

primeiro romance, The Youthful Impostor (publicado novamente como The Parricide em

1847), tornou-se editor literário do Paris Literary Gazette e teria supostamente investido no

jornal London and Paris Courier como coeditor.92 Não obstante, suas finanças iam de mal a

pior: além de ter começado vários empreendimentos arriscados com a promessa de pagar

quando recebesse sua herança, ele era um dandy declarado e gostava de manter um estilo de

vida aristocrático. Meses depois de embolsá-la e quitar todas as dívidas que havia acumulado,

declarou falência e voltou para a Inglaterra com a família.93

Morando em Londres, Reynolds retomou a escrita para sustentar sua esposa e seus

filhos. Em 1837, passou a contribuir para a revista literária Bentley’s Miscellany94 e a editar a

Monthly Magazine of Politics, Literature and the Belles-Lettres, onde publicou a série

Pickwick Abroad, or The Tour in France (1837-1838), uma “continuação” não autorizada do

então recém-concluído The Pickwick Papers (1836-1837), de Charles Dickens. Essas e outras

séries escritas por Reynolds (com algumas colaborações de sua esposa, que também escrevia

e chegou a publicar um romance e uma novela alguns anos mais tarde) ajudaram a aumentar a

circulação da Monthly Magazine, que estava quase falida, mas após uma discussão com os

proprietários, que teriam achado o conteúdo delas muito “atrevido”, ele deixou a editoria e a

revista encerrou suas atividades subsequentemente.95 Desempregado, mas de jeito nenhum

desanimado, resolveu aproveitar sua ligação com a França e publicou Reynolds’s French Self

90 COLLINS, op. cit., pos. 411-419.

91 COLLINS, Dick. “George William McArthur Reynolds: A very brief introduction”. Disponível em:

. Acesso em: 22 de janeiro de

2015.

92 HUMPHERYS; JAMES, op. cit., pp. 3-4.

93 COLLINS, “A very brief introduction”.

94 KIRKPATRICK, op. cit., p. 72.

95 HUMPHERYS; JAMES, op. cit., p. 4.

50

Instructor (1839), Alfred de Rosann, or The Adventures of a French Gentleman (1839), The

Modern Literature of France (1839), Grace Darling, or The Heroine of the Fern Islands

(1839) e Robert Macaire in England (1840).96

Em 1840, sua carreira deu uma guinada bastante pitoresca: Reynolds se tornou

defensor do Movimento do Abstencionismo (que advoga a moderação ou a privação do

consumo de bebidas alcóolicas) e se converteu ao teetotalism (isto é, a prática de se abster

totalmente do álcool) após encontrar J. H. Donaldson palestrando na rua, chegando a ser

presidente da London United Temperance Association e a editar a revista The Tee-Totaller

(1840-1841), na qual publicou um bocado de ficção sensacionalista sobre o assunto que não

agradou muito. Em um impulso, o que já estava se tornando um hábito, Reynolds se

desentendeu com os líderes abstencionistas

,

e, posteriormente, foi nomeado diretor geral da

United Kingdom Anti-Teetotal Society.97

Mais uma vez, Reynolds perdeu o emprego; nessa época, ele e a família moravam

em um cômodo único localizado em uma área modesta de Londres, mal tendo o suficiente

para subsistirem. Pouco se sabe o que ele fez nos anos que seguiram, mas, aparentemente, não

havia deixado de produzir. Em 1844, um jornalista chamado John Dix o visitou em sua casa e

relatou que o havia encontrado em um quarto dos fundos, “embrulhado num roupão encardido

e empoleirado no banco de uma escrivaninha alta, escrevendo como uma máquina a vapor” –

e foi provavelmente nessa ocasião que começou a escrever sua obra-prima.98

The Mysteries of London foi publicado pelo editor George Vickers em partes

semanais de um penny cada entre outubro de 1844 e setembro de 1848, totalizando 52

números para cada um de seus dois grandes volumes. Cada parte era composta de oito páginas

e continha uma xilogravura feita pelo ilustrador George Stiff; ao final de cada mês, elas eram

reunidas em números que custavam sixpence, e ao final do ano, se transformavam em um

volume. O romance logo se tornou um best-seller, e Reynolds finalmente conseguiu se

estabilizar financeiramente como escritor. Inicialmente, ele e seu editor haviam estipulado que

o romance seria dividido em duas séries contendo dois volumes cada,99 mas ao final da

96 COLLINS, “A Biographical Sketch”, pos. 656-665.

97 HUMPHERYS; JAMES, op. cit., p. 4.

98 COLLINS, “A Biographical Sketch”, pos. 800-818.

99 Aparentemente, há um problema de cálculo aqui. A maioria das referências a The Mysteries of London que

consultei estabelece que ele foi de fato publicado entre 1844 e 1848. Porém, no epílogo do segundo volume,

abaixo da assinatura de Reynolds, lê-se “THE END OF THE FIRST SERIES”, o que confirma a divisão

mencionada acima, mas não bate com a data em que o romance teria sido concluído. Desse modo, é provável

que Reynolds e Vickers tenham rompido em 1846 e que os dois anos seguintes se refiram aos terceiro e quarto

volumes que compõem a segunda série e que foram escritos por outros autores. Como o romance se

popularizou levando o nome de Reynolds, convencionou-se considerar todo o período de publicação.

51

primeira, os dois brigaram, provavelmente por causa de dinheiro, e a parceria terminou.

Então, Vickers contratou outros dois escritores para continuarem o romance interrompido:

Thomas Miller e Edward Leman Blanchard escreveram o terceiro e o quarto volumes,

respectivamente; no entanto, nenhum deles parecia ter o talento de Reynolds, pois a segunda

série não teve tanto sucesso quanto a outra.

A partir daí, Reynolds passou a trabalhar com John Dicks, que se tornaria não só seu

editor permanente, mas também amigo pessoal e “gerente financeiro”. Em 1845, tornou-se o

primeiro editor do London Journal (1845-1912), a convite de Stiff, mas permaneceu no cargo

por apenas um ano.100 Logo depois, dedicou-se ao projeto que ele e seu editor haviam

elaborado, o periódico Reynolds’s Miscellany of Romance, General Interest, Science and Art,

no qual publicou Wagner the Wehr-Wolf (1846-1847), The Mysteries of the Court of London

(1848-1856) e The Necromancer (1851-1852). Porém, o que era para ter sido mais uma

conquista acabou virando, pelo menos no início, motivo de estresse e de exposição ao

ridículo: mesmo depois de terem discutido, Reynolds e Vickers se mantiveram cordiais um

com o outro, até o dia em que o escritor se surpreendeu ao ver uma publicação intitulada

Reynolds’s Magazine, que vinha assinada por seu ex-editor e que tinha exatamente o mesmo

conteúdo do seu periódico, sendo vendida em todas as bancas da cidade antes da data marcada

para o lançamento do mesmo. Enfurecido, ele exigiu uma explicação, mas só o que ouviu foi

que tudo aquilo não havia passado de coincidência. O que de fato aconteceu foi que Reynolds

teve de enviar cópias do primeiro número de Reynolds’s Miscellany para os distribuidores,

incluindo Vickers, mas também teve a infelicidade de contratar os serviços de impressão de

Stiff, que trabalhava principalmente para Vickers; os dois já haviam anunciado que lançariam

uma revista para concorrer com o periódico, e embora soubesse da reputação não muito

respeitável deles, Reynolds não poderia imaginar que se tratava de um plágio completo de seu

material. Como era de se esperar, publicou um ataque a seus rivais que demonstrava tanto

esnobismo que acabou virando piada. No fim das contas, ambas as partes envolvidas nesse

episódio sofreram as consequências características do oscilante mercado editorial: enquanto

Reynolds’s Magazine durou pouco tempo, Reynolds’s Miscellany foi um grande sucesso por

pelo menos 22 anos101 e rendeu lucros a longo prazo para Reynolds e Dicks.102

100 HUMPHERYS; JAMES, op. cit., p. 4.

101 ADco*ck, John. Yesterday’s Papers. Blog elaborado por John Adco*ck sobre jornais, periódicos e revistas

populares dos séculos XIX e XX. Disponível em

miscellany.html>. Acesso em: 21 de janeiro de 2015. De acordo com a lista elaborada pelo autor, Reynolds’s

Miscellany circulou de novembro de 1846 a maio de 1868, totalizando 40 volumes.

102 COLLINS, “A very brief introduction”.

52

Algumas de suas experiências anteriores e não muito boas como editor o fizeram

baixar o teor de sensacionalismo na ficção. Ao começar The Mysteries of London, no entanto,

Reynolds sentiu pela primeira vez em sua carreira que podia escrever o que quisesse,

provavelmente porque a série não estava vinculada a nenhum periódico – e foi nessa obra

especificamente que deixou transparecer suas ideias radicalistas com mais firmeza, o que o

ajudou a se lançar não só como autor, mas também como voz política popular.103 Apoiando-se

nos ideais das Revoluções de 1830, ele acreditava que a reforma na Inglaterra só aconteceria

com a queda da aristocracia e das instituições corruptas; daí seu envolvimento com as

agitações promovidas pelas classes populares. Em 1848, ao se juntar a uma manifestação do

Movimento Cartista realizada em Trafalgar Square contra o novo Imposto de Renda, ele fez

um discurso inflamado a favor dos Fundamentos do Cartismo, trazendo-lhe tanta notoriedade

que, pouco depois, foi convidado a participar da Convenção Cartista e a atuar como porta-voz

na apresentação da Petição ao governo.104 Assim, passou a usar seu talento para a ficção e o

jornalismo para divulgar e defender o Movimento Cartista, contribuindo para que o

movimento tivesse um engajamento cultural maior com a massa leitora composta pela classe

média baixa e pela classe trabalhadora; porém, muitos não gostavam da comoção que ele

causava e desconfiavam da sinceridade de seu radicalismo.105 Ainda que escrevesse ficção

sensacionalista visando principalmente ao dinheiro que a atividade lhe rendia, Reynolds

também queria garantir que as pessoas lessem e conhecessem suas visões polêmicas como

uma forma de “despertá-las” para as injustiças da sociedade inglesa.106

Nesse mesmo ano, Reynolds faliu pela terceira vez em sua vida, mas conseguiu lidar

bem com a situação e se recuperar rapidamente graças ao bom senso de Dicks. No ano

seguinte, ainda envolvidos com questões políticas, os dois lançaram o Political Instructor,

que evoluiu para Reynolds’s Weekly Newspaper; a Journal of Democratic Progress and

General Intelligence e novamente para Reynolds’s Newspaper; o jornal teve circulação

crescente ao longo dos anos e durou até 1962, tornando-se o principal canal de informações

das atividades socialistas na Inglaterra.107 Mais tarde, depois de tantos endereços diferentes

desde sua chegada a Londres, ele e a família se fixaram em Islington, e sua condição

103 COLLINS,

,

“A Biographical Sketch”, pos. 880-897.

104 Ibidem, pos. 897-927.

105 HUMPHERYS; JAMES, op. cit., p. 6.

106 COLLINS, “A Biographical Sketch”, pos. 843-847.

107 HUMPHERYS; JAMES, op. cit., p. 6.

53

financeira já restabelecida permitiu que abrisse dois escritórios na cidade e comprasse uma

casa de campo em Kent.108

Há poucas informações específicas sobre suas atividades durante a década de 1850

além das explicitadas anteriormente, mas tendo finalmente adquirido segurança em relação a

dinheiro, supõe-se que tenha prosseguido na edição de seus periódicos e na serialização de

seus romances. Em 1862, editou o Bow Bells, elaborado para ser uma vertente mais

“respeitável” do Reynolds’s Miscellany (os dois se fundiram sete anos depois);109 no mesmo

ano, porém, Reynolds decidiu se aposentar, passando o cargo de escritor-chefe para James

Malcolm Rymer (do qual o capítulo seguinte tratará) e vendendo os direitos autorais de todas

as suas obras para Dicks.110 Nessa época, já estava viúvo há pelo menos dois anos e morava

com sete filhos (dois haviam morrido alguns anos antes) em uma casa grande e bonita no

distrito de Bloomsbury. Com o passar dos anos, começou a ganhar peso e acabou

desenvolvendo hipertensão, insuficiência renal e diabetes; em 1877, foi acometido por um

acidente vascular cerebral que o paralisou de um lado e o impossibilitou de falar. Reynolds

veio a falecer no dia 19 de junho de 1879, aos 64 anos, em decorrência de um colapso.111

Ao longo dos altos e baixos de sua vida, Reynolds permaneceu determinado a

cumprir seus objetivos: conseguiu vencer a pobreza e exprimir suas ideias pouco

convencionais através de seu trabalho como escritor, tornando-se um membro respeitável da

classe média vitoriana e alcançando uma popularidade imensa com sua ficção excessiva

porém instigante. Todavia, recebeu muitas críticas daqueles que não o aceitavam socialmente

e que não reconheciam sua habilidade literária. Obviamente, grande parte delas vinha da

direita em relação aos seus “impulsos revolucionários” e retratos críticos das classes

dominantes, mas também das pessoas que viam o que escrevia como um tipo de literatura

escandalosa que só satisfazia o assanhamento e a morbidez dos leitores e que deixava de lado

qualquer ensinamento moral sobre o vício e a vilania.112 Mas, como Louis James afirma,

Reynolds foi acusado com frequência de corromper seu público. Na verdade, porém,

ele oferecia à massa leitora um mundo de excitação, controvérsia e, por mais que

tivesse uma pitada de sensacionalismo e melodrama, informação – pois, como se

108 COLLINS, “A Biographical Sketch”, pos. 1143-1154.

109 HUMPHERYS; JAMES, op. cit., p. 6.

110 COLLINS, “A Biographical Sketch”, pos. 1567.

111 Ibidem, pos. 1699-1704.

112 Mischievous Literature. The Bookseller, Londres, 1º de julho de 1868, p. 448 apud HUMPHERYS; JAMES,

op. cit., p. 8.

54

pôde notar, Reynolds acreditava veementemente que qualquer avanço social deveria

se basear na educação.113

Além disso, muitos escritores não simpatizavam com ele – sobretudo o único que o

superava em popularidade.114 Talvez ressentido por ter sido plagiado tantas vezes, Dickens

considerava o colega de profissão como um rival que precisava ser combatido, referindo-se a

ele indiretamente como um escritor que se rende “[à]s paixões mais vis da natureza mais

baixa” em seu periódico Household Words (1850-1859).115 Em resposta ao ataque, Reynolds

o chamou de “bajulador desgraçado da aristocracia” e o acusou de não se compadecer

genuinamente das condições da classe trabalhadora no Reynolds’s Miscellany.116

Não obstante as opiniões nem sempre positivas que se tinha sobre ele, suas obras

interessaram não só a leitores locais, mas também de outros países: elas foram largamente

lidas – e também plagiadas – nas colônias do Império Britânico (especialmente na Índia, onde

The Mysteries of London foi traduzido para o bengalês),117 nos Estados Unidos e em várias

nações europeias. Entretanto, seu maior mérito foi o papel que cumpriu na difusão de jornais,

revistas e periódicos especificamente voltados para as classes sociais mais baixas. Junto com

Edward Lloyd (outro importante editor de periódicos baratos e de penny bloods de quem o

capítulo seguinte tratará com mais detalhes), ele se aproveitou do surgimento de um público

interessado em leitura de entretenimento para iniciar um empreendimento de sucesso no

mercado editorial, mas preocupando-se em publicar assuntos e histórias que lhes

113 “Reynolds was frequently accused of debauching his readership. But in fact he provided his mass readership

with a world of excitement, controversy, and, however this was spiced with sensation and melodrama,

information – for as we have noted, Reynolds believed passionately that any social advance must be based on

education.” JAMES, Louis. “Foreword”. In: The Mysteries of London, Vol. 1. Edição Kindle. Kansas:

Valancourt Books, 2013, pos. 211-217.

114 Em um programa de rádio especial sobre Reynolds, intitulado The Other Dickens e transmitido pela BBC

Radio 3, um dos entrevistados afirma que Dickens era apreciado e até mesmo amado pelos vitorianos, o que se

explicava pela respeitabilidade e pelo respaldo de valores familiares expressos pelo escritor; já Reynolds não

era tão querido assim, apesar de suas obras terem sido mais lidas que as de seu “rival”. Ambos foram escritores

muito populares em seu tempo, mas enquanto a popularidade de um era mais “afetiva”, a do outro era

“quantitativa”. Para mais detalhes, ver BBC RADIO 3. The Other Dickens. Disponível em:

. Acesso em: 10 de janeiro de 2015.

115 A indireta foi feita enquanto Dickens explicava a que o seu periódico se destinava e dizia o seguinte: “Some

tillers of the field into which we now come, have been before us, and some are here whose high usefulness we

readily acknowledge, and whose company it is an honour to join. But, there are others here – Bastards of the

Mountain, draggled fringe on the Red Cap, Panders to the basest passions of the lowest natures – whose

existence is a national reproach. And these, we should consider it our highest service to displace.” DICKENS,

Charles. A Preliminary Word. Household Words, Londres, 30 de março de 1850, pp. 1-2. Disponível em:

. Acesso em: 22 de janeiro de 2015.

116 Lia-se no contra-ataque: “That lickspittle hanger-on to the skirts of Aristocracy’s robe – ‘Charles Dickens

Esq.’ – originally a dinnerless penny-a-liner on the Morning Chronicle (…) this wretched sycophant of

Aristocracy – this vulgar flatterer of the precious hereditary peerage – is impudent enough to consider himself

the people’s friend!” ADco*ck, op. cit. Disponível em:

adco*ck.blogspot.com.br/2011_05_01_archive.html>. Acesso em: 22 de janeiro de 2015.

117 GLOVER, op. cit., p. 21.

55

interessavam; além de criar um vínculo estreito entre escritor e leitor, isso contribuiu para a

formação de uma imprensa que atendia à massa e que pode ser considerada uma grande

inovação cultural do século XIX. É por sua identificação com a classe trabalhadora

predominante, que o tornou popular, e sua intenção de revelar os segredos da cidade que mais

o inspirou enquanto escritor para denunciar seus problemas, que G. W. M. Reynolds pode ser

considerado um porta-voz da multidão londrina.

2.2 O submundo urbano: os mistérios de Paris e de Londres

Os avanços e as carências resultantes do crescimento urbano em Londres no século

XIX certamente serviram de inspiração para que G. W. M. Reynolds escrevesse The

Mysteries of London. De modo geral, a maneira fragmentada com que a cidade moderna se

desenvolveu gerou no meio literário a “curiosidade” de explorar e de revelar o que se passava

,

nas diferentes realidades existentes em um lugar com tantos contrastes, o que acabou levando

ao surgimento de um gênero conhecido como romance de mistérios. De acordo com Anne

Humpherys, ele surgiu nas décadas de 1840 e 1850 como uma reação à urbanização, com a

palavra “mistérios” se referindo “à experiência fragmentada e por isso incoerente da cidade

moderna e também aos sentimentos de desconexão resultantes dela”, e refletia uma fronteira

instável entre as esferas pública e privada.118 Desse modo, seu foco principal é a exposição de

aspectos da vida urbana que os personagens ou toda a sociedade retratados nele ignoram ou

mantêm em segredo: o crime em todas as suas variações é um tema recorrente, bem como a

corrupção das instituições sociais (a lei, os serviços públicos, a religião), a decadência da

aristocracia e a miséria da plebe. Além disso, a narrativa de mistérios costuma ter vários

enredos se desenrolando ao mesmo tempo, que geralmente se conectam por coincidência, o

que constitui não só uma forma de manter o suspense da história, mas também uma tentativa

de “desfragmentar” a cidade revelando relacionamentos urbanos secretos.119

O enredo e a estrutura narrativa de The Mysteries of London foram bastante

influenciados pelas características do romance de mistérios, fato que se deve principalmente à

tendência do gênero penny blood de se hibridizar com outros gêneros correntes, conforme

118 “‘Mysteries’ refers linguistically to the fragmented and hence incoherent experience of the modern city as

well as to the resulting feelings of disconnectedness.” HUMPHERYS, Anne. “Generic Strands and Urban

Twists: The Victorian Mysteries Novel”. In: Victorian Studies, v. 34, n. 4, verão de 1991, pp. 455-456. Ela

acrescenta que o romance de mistérios também surgiu como uma intermediação entre o romance de Newgate –

que tratava essencialmente de crimes e criminosos públicos – o e romance sensacionalista – que versava sobre

crimes e escândalos domésticos.

119 Ibidem, pp. 463-464.

56

explicado no capítulo anterior. Como o próprio título sugere, o romance se propõe a expor

fatos intrigantes que compõem o caos urbano da capital inglesa e que estão invariavelmente

ligados ao crime e à transgressão moral. Estendendo-se por duzentos e cinquenta e nove

capítulos, ele apresenta uma infinidade de personagens que se cruzam por meros acasos do

destino, e também cenários que se intercalam de forma estranhamente intricada. Por essa

razão, torna-se difícil definir seu enredo com precisão e abrangência, de modo que somente

alguns de seus elementos serão destacados neste capítulo. Segundo Richard C. Maxwell, a

imensidão do mundo representado nessa obra corresponde a uma intenção do autor de exaltar

a inexauribilidade de Londres e seus mistérios.120

O enredo geral de The Mysteries of London se constrói a partir de uma história

central que desencadeia e se conecta com várias histórias periféricas, formando um conjunto

de núcleos com casos e personagens específicos. Em uma linguagem típica de um conto

moral, o narrador anuncia a história central no prólogo do romance:

Dessa cidade de estranhos contrastes procedem duas estradas, que levam para dois

destinos totalmente diferentes um do outro.

Uma delas segue tortuosamente por todos os antros de crime, chicana, dissipação e

volúpia; a outra meandra entre rochas escarpadas e aclives laboriosos, é verdade,

mas à sua margem se encontra a morada da retidão e da virtude.

Dois jovens fazem suas jornadas nessas estradas.

Eles partiram do mesmo ponto, mas um segue o primeiro caminho, e o outro, o

segundo.

[...]

Quem são esses jovens que iniciaram caminhos tão opostos ou ao outro?

E para onde essas estradas separadas os conduzem?121

Esses dois jovens são os irmãos Eugene e Richard Markham. Eles pertencem a uma

família rica e tradicional da sociedade inglesa, mas embora tenham sido criados e educados do

mesmo modo, têm personalidades totalmente opostas: Eugene, o mais velho, é egoísta,

ambicioso e rebelde, enquanto Richard é altruísta, humilde e honesto. Após ser expulso de

120 MAXWELL, JR., Richard C. “G. M. Reynolds, Dickens, and the Mysteries of London”. In: Nineteenth-

Century Fiction, v. 32, n. 2, setembro de 1977, p. 190.

121 “From this city of strange contrasts branch off two roads, leading to two points totally distinct the one from

the other.

One winds its tortuous way through all the noisome dens of crime, chicanery, dissipation, and voluptuousness:

the other meanders amidst rugged rocks and wearisome acclivities, it is true, but on the wayside are the resting-

places of rectitude and virtue.

Along those roads two youths are journeying.

They have started from the same point; but one pursues the former path, and the other the latter.

[…]

Who are those youths that have thus entered upon paths so opposite the one to the other?

And to what destinies do those separate roads conduct them?” REYNOLDS, G. W. M. The Mysteries of

London, Vol. 1. Edição Kindle. Kansas: Valancourt Books, 2013, pos. 312-330.

57

casa pelo próprio pai, que reprovava seu gosto por jogos de aposta e seus excessos com

dinheiro, Eugene resolve tocar sua vida sozinho e pôr seus planos para enriquecer em prática.

Richard tenta dissuadi-lo, pedindo que ele releve a atitude impulsiva do pai e ao mesmo

tempo duvidando que consiga fazer uma fortuna tão facilmente, mas Eugene se mostra

irredutível e confiante quanto à escolha que fez. Antes de partir, ele promete ao irmão mais

novo que voltará dali a doze anos para que, juntos, façam um balanço do que cada um

conquistou na vida.

Ao longo desse período, os dois vivem experiências opostamente paralelas uma à

outra. Richard se torna um jovem homem rico ao herdar a fortuna de seu pai, mas perde quase

tudo por causa de especulações mal-sucedidas feitas por seu tutor. Como se isso não bastasse,

sua ingenuidade acaba fazendo com que ele caia em uma armadilha feita por oportunistas e

seja preso injustamente. Ao sair da cadeia, passa a ser acossado por um bandido terrível

conhecido como Resurrection Man, que ameaça contar a todos sobre sua estadia na prisão e

frustra todos os esforços do rapaz para retomar sua vida com dignidade. Não se deixando

abalar pela ruína nem pelo estigma, Richard trabalha como professor e se aventura como

dramaturgo, e embora nenhuma das ocupações durem muito, elas lhe permitem sustentar a si

mesmo e ainda ajudar seus amigos em necessidade. Eugene, por sua vez, galga a posições

elevadas na sociedade londrina: agindo sob o falso nome George Montague Greenwood (um

segredo que logo se torna óbvio, mas que só é oficialmente revelado no final do romance), ele

se transforma em um capitalista influente e um sedutor mau-caráter capaz de levar homens

riquíssimos à falência e de deflorar moças respeitáveis. Quanto mais enriquece, mais almeja

ao poder, e por meio de golpes e manobras, consegue finalmente se eleger como Membro do

Parlamento, título do qual se aproveita para beneficiar a si mesmo e à aristocracia.

Entretanto, as peripécias da trama fazem com que a sorte de cada um mude

completamente. Por honra à família de sua amada Princesa Isabella, Richard parte para uma

guerra na Itália, na qual demonstra tanto heroísmo que, após seu casamento com a bela moça,

é nomeado Príncipe de Montoni. Mesmo ocupando uma posição social tão altiva, ele

permanece um homem bondoso e humilde, dedicando-se genuinamente ao humanitarismo e

sempre intercedendo por sua própria conta em favor da justiça e do bem. Enquanto isso, as

especulações extravagantes que fizeram de Eugene um homem rico e poderoso começam a

dar sinais de fracasso. Depois de perder uma grande soma de dinheiro em um assalto na

estrada, ele recorre a negócios arriscados e empréstimos altíssimos para se recuperar, o

,

12

CAPÍTULO 1 – Penny Bloods: definição, história e trajetória ................................................ 17

1.1 Urbanização, alfabetização e o mercado editorial: três condições básicas ......................... 20

1.2 A forma da penny blood ..................................................................................................... 24

1.3 Crime, escândalo, horror e a formação do gótico urbano ................................................... 29

1.4 A penny blood e a inauguração da ficção de massa ........................................................... 34

CAPÍTULO 2 – Cidade de trevas e de luz: o submundo da corrupção e da desumanidade em

The Mysteries of London .......................................................................................................... 43

2.1 G. W. M. Reynolds: escritor, jornalista e porta-voz das massas ........................................ 46

2.2 O submundo urbano: os mistérios de Paris e de Londres ................................................... 55

2.3 Das favelas aos palácios: perspectivas do gótico urbano ................................................... 63

2.3.1 Os vilões: o bandido e o transgressor .............................................................................. 64

2.3.2 O crime: a corrupção e a decadência da sociedade londrina ........................................... 72

2.3.3 A desumanidade: espetáculos de morbidez e horror ....................................................... 79

2.3.4 A cidade: um labirinto vasto e desconhecido .................................................................. 89

2.4 The Mysteries of London: uma narrativa de horror, melodrama e sensacionalismo .......... 92

CAPÍTULO 3 – Um corte da navalha, outro do cutelo: crime, mercado negro e canibalismo

em The String of Pearls: A Romance ....................................................................................... 98

3.1 O terreno amaldiçoado da Rue de la Harpe: uma lenda parisiense .................................. 101

3.2 O barbeiro demoníaco da Rua Fleet: um conto londrino.................................................. 104

3.3 Do capitalismo ao canibalismo: perspectivas do gótico urbano ....................................... 116

3.3.1 Os vilões: o civilizado, o primitivo, o monstro ............................................................. 117

3.3.2 Tortas canibalísticas: o tabu e o abjeto .......................................................................... 121

3.3.3 A cidade: o submundo, a alienação, o estranho ............................................................. 124

3.4 The String of Pearls: uma narrativa de horror ou de humor? ........................................... 130

CONCLUSÃO ........................................................................................................................ 137

OBRAS CITADAS ................................................................................................................ 141

OBRAS CONSULTADAS .................................................................................................... 149

LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 Charge de “‘Parties’ for the Gallows”, Punch (Junho, 1845), f. 17

Figura 2 Propaganda de um dos periódicos semanais publicados por Edward Lloyd, f. 35

Figura 3 “A Ball at the Mansion House”, de Gustave Doré. In: JERROLD, Blanchard.

London: A Pilgrimage (1872), f. 43

Figura 4 “Bluegate Fields”, de Gustave Doré. In: JERROLD, Blanchard. London: A

Pilgrimage (1872), f. 43

Figura 5 Cena da morte de Polly Bolter ilustrada por George Stiff em The Mysteries of

London, f. 83

Figura 6 Cenas da preparação do cadáver em The Mysteries of London, f. 87

Figura 7 Cena do quarto de execução em The Mysteries of London, f. 87

Figura 8 Primeira página de The String of Pearls: A Romance. In: The People’s

Periodical and Family Library (Novembro, 1846), f. 98

Figura 9 Ilustração de The String of Pearls: or, The Sailor’s Gift, uma edição mais longa

de The String of Pearls lançada por Edward Lloyd em 1850, f. 113

Figura 10 Ilustração de The String of Pearls: or, The Sailor’s Gift, uma edição mais longa

de The String of Pearls lançada por Edward Lloyd em 1850, f. 113

Figura 11 “Tremendous Sacrifice”, charge de George Cruikshank publicada em Our Own

Times (1846), f. 129

12

INTRODUÇÃO

Esta dissertação é o resultado final da pesquisa desenvolvida ao longo do curso de

mestrado acerca de um vasto e mal-afamado gênero de ficção que surgiu na era vitoriana sob

a denominação penny blood. Ela tem como objetos centrais dois romances serializados em

periódicos – seguindo a tendência do roman-feuilleton francês – durante a década de 1840 na

Inglaterra: The Mysteries of London (1844-1848), de G. W. M. Reynolds, e The String of

Pearls (1846-1847), de autor anônimo. Essas obras são apenas dois exemplares desse gênero,

que se caracterizou pela publicação massiva de histórias de horror e de crime com o intuito de

atender à crescente demanda por entretenimento da população, inaugurando, portanto, o que

hoje se chama de ficção de massa. Além desse importante marco, outro mérito que se pode

atribuir às penny bloods é o resgate do gênero gótico, porém reconfigurado ao compasso das

grandes transformações ocorridas no século XIX, principalmente aquelas relacionadas ao

desenvolvimento das cidades e ao nascimento do capitalismo, formando, assim, o gótico

urbano, uma variante particularmente associada à era vitoriana que transfere o horror para o

mundo burguês e para o novo ambiente da cidade. Assim, ao longo da dissertação, analisa-se

como o horror é construído em cada romance a partir de determinados elementos do gótico

urbano, tais como a caracterização da cidade – especificamente a Londres vitoriana –, a figura

do vilão e os perigos que ele representa para suas vítimas, o medo e a ansiedade gerados pelo

crime; a partir daí, observa-se de que forma as penny bloods se relacionaram, desde sua

origem até seus modos de representação, com importantes questões sociais que se

desenrolaram nesse momento histórico da Inglaterra.

Os capítulos que compõem esta dissertação tratam de aspectos relevantes sobre as

penny bloods levantados durante a pesquisa. Ao propor uma abordagem delas enquanto

inauguradoras da ficção de massa e formadoras do gótico urbano, tomam-se como ponto de

partida trabalhos crítico-teóricos que perpassam a literatura, a sociologia, a psicanálise e os

estudos culturais. Esse conjunto interdisciplinar se torna bastante importante para o

desenvolvimento das questões centrais propostas neste trabalho, uma vez que a ficção de

massa e o gótico urbano implicam conceitos e teorias provenientes de outros campos do saber

em seu estudo.

O primeiro capítulo da dissertação discorre sobre a história, a formação e a definição

do subgênero penny blood. A urbanização, a alfabetização em massa e o crescimento do

mercado editorial ocorridos na Inglaterra no século XIX foram cruciais para o surgimento

desse tipo de ficção de massa, e para mostrar como a interação desses três fatores se deu,

13

parte-se das considerações feitas por estudiosos como Patrick Brantlinger (The Reading

Lesson: The Threat of Mass Literacy in Nineteenth-Century British Fiction, 1998), Kate Flint

(“The Victorian Novel and Its Readers”, 2001) e Jonathan Rose (“Education, Literacy, and

the Reader”, 2002) sobre a relação entre a alfabetização e a popularização da leitura, e por

Kelly J. Mays (“The Publishing World”, 2002) e Simon Eliot (“The Business of Victorian

Publishing, 2001) sobre a indústria da publicação. Juntos, esses estudos fornecem dados

bastante relevantes acerca do nascimento do público leitor de ficção de massa.

Outro elemento importante na formação das penny bloods foi o fato de que elas

compartilhavam aspectos temáticos encontrados em outros subgêneros do romance que se

tornaram populares

,

que só

contribui para que ele se afunde em dívidas cada vez maiores. Falido e renegado por todos os

seus comparsas, resta-lhe apenas cumprir a promessa que fizera ao irmão. No dia marcado

58

para o reencontro, Eugene confessa todos os erros que cometeu na vida que escolhera ter e

pede perdão a Richard.

As histórias periféricas, contudo, estão mais diretamente relacionadas aos

desdobramentos infinitos dos contrastes sociais que tanto intrigavam G. W. M. Reynolds. De

modo a enfatizar a disparidade entre as condições de vida dos pobres e as dos ricos, o autor

lança mão de descrições detalhadas e realistas do ambiente e dos acontecimentos. Antes

mesmo de convocar a história dos dois irmãos, o narrador afirma o seguinte:

Nessa cidade, há cinco estabelecimentos proeminentes em todos os distritos: a

igreja, na qual os pios rezam; o botequim, ao qual os pobres miseráveis recorrem

para afogarem suas mágoas; a casa de penhor, na qual criaturas necessitadas

penhoram suas roupas e as roupas de seus filhos até o último retalho para terem

como comprar comida e – por vezes, infelizmente – bebida intoxicante; a prisão, na

qual as vítimas de uma sociedade enferma expiam os crimes que cometeram por

fome e desespero; e o asilo, para o qual os destituídos, os idosos e os desamparados

se apressam e deitam suas cabeças doloridas – e morrem!

E, concentrado em um distrito dessa cidade, há um conjunto de palácios, dos quais

emana o som deleitoso de música à noite; dentro dos quais os pés andam sobre

tapetes caros; cujos aparadores são cobertos de pratarias; cujos cômodos contêm o

néctar mais seleto das zonas temperadas e tórridas; e cujos habitantes se reclinam

sob dosséis de veludo, se banqueteiam com pratos selecionados dos quatro cantos do

mundo e mal precisam levantar um dedo para terem seus desejos atendidos.

Oh! Como são terríveis esses contrastes!122

Como se vê, a miséria e a abundância coabitam de forma desproporcionada em

Londres: enquanto uma grande parcela da população vive precariamente nas favelas ou

mesmo aprisionados, um pequeno grupo concentrado nos bairros nobres da cidade dispõe de

luxo e privilégios. Apesar da diferença em termos de renda e de espaço, porém, esses dois

mundos possuem ligações funestas e perigosas que se traduzem pelo crime e pela

imoralidade:

O crime é abundante nesta cidade; o leprosário, a prisão, o bordel e o beco escuro

são infestados de todos os tipos de abominação; da mesma forma, o palácio, a

mansão, o clube, o parlamento e a paróquia são todos caracterizados por diferentes

122 “In that city there are in all districts five prominent buildings: the church, in which the pious pray; the gin-

palace, to which the wretched poor resort to drown their sorrows; the pawn-broker’s, where miserable creatures

pledge their raiment, and their children’s raiment, even unto the last rag, to obtain the means of purchasing

food, and – alas! too often – intoxicating drink; the prison, where the victims of a vitiated condition of society

expiate the crimes to which they have been driven by starvation and despair; and the workhouse, to which the

destitute, the aged, and the friendless hasten to lay down their aching heads – and die!

And, congregated together in one district of this city, is an assemblage of palaces, whence emanate by night the

delicious sounds of music; within whose walls the foot treads upon rich carpets; whose sideboards are covered

with plate; whose cellars contain the choicest nectar of the temperate and torrid zones; and whose inmates

recline beneath velvet canopies, feast at each meal upon the collated produce of four worlds, and scarcely have

to breathe a wish before they find it gratified.

Alas! how appalling are these contrasts!” REYNOLDS, op. cit., pos. 275-288.

59

graus e formas de vício. Mas por que especificar crime e vício por seus nomes reais

se, na cidade da qual falamos, eles são absorvidos por palavras tão abrangentes

quanto RIQUEZA e POBREZA?123

Nesse sentido, Londres abriga mazelas sociais e escândalos morais que se escondem

em seus nichos mais obscuros e em seus espaços mais privados, apesar de ser vista como o

epítome da civilização. No East End, a pobreza e a fealdade fazem com que ladrões,

vagabundos e assassinos se proliferem e ameacem a ordem social; já no West End, a riqueza e

a elegância fazem funcionar a máquina da corrupção pela qual nobres, magnatas e escroques

aumentam suas fortunas. Nas palavras de E. S. Turner, The Mysteries of London “alegava ser

uma exposição do vício voluntário nos bairros nobres e do vício involuntário nos bairros

pobres”.124

No decorrer das numerosas histórias que compõem o romance, o narrador descreve

um complexo submundo urbano, cujo território acomoda, entre muitas outras coisas, ruas

imundas e sombrias, um botequim sujo que vende comida e bebida adulteradas,125 a

famigerada prisão de Newgate, casas que servem como reduto de bandidos, um cômodo

sinistro que exibe variadas técnicas de execução, o hospício Bethlem, um banco que funciona

com seus cofres esvaziados, a Câmara Escura onde funcionários do correio interceptam e

leem as correspondências particulares dos cidadãos, salões de jogos onde cavalheiros

enriquecem e empobrecem, haréns particulares e mansões luxuosas que guardam crimes

brutais; e cujos habitantes incluem a velha alcoviteira sem nome,126 os assaltantes Bill Bolter,

Dick Flairer, Tom the Cracksman, Buffer e o assassino Resurrection Man, a ladra Rattlesnake,

o carrasco Smithers, o ex-condenado Crankey Jem, os ciganos Zingarees, os vigaristas Arthur

Chichester e Sir Rupert Harborough, a aproveitadora Lady Cecilia Harborough, o devasso

Marquês de Holmesford, o hipócrita Reverendo Reginald Tracy, a impiedosa Lady

Ravensworth e vários outros tipos imorais e criminosos. Grande parte das cenas e dos casos

relatados por ele, que constituem os “mistérios de Londres”, vem acompanhada de

comentários inflamados sobre a conduta escusa e arbitrária das instituições e a situação

123 “Crime is abundant in this city; the lazar-house, the prison, the brothel, and the dark alley, are rife with all

kinds of enormity; in the same way as the palace, the mansion, the club-house, the parliament, and the

parsonage, are each and all characterised by their different degrees and shades of vice. But wherefore specify

crime and vice by their real names, since in this city of which we speak they are absorbed in the multi-

significant words – WEALTH and POVERTY?”. Ibidem, pos. 301-312.

124 “[ The Mysteries of London] professed to be an exposure of voluntary vice in high places and involuntary vice

in low places”. TURNER, op. cit., pos. 339.

125 G. W. M. Reynolds dá várias designações para os pubs que descreve no romance; esse é especialmente

referido como boozing-ken.

126 No romance, ela é simplesmente referida como old hag.

60

estarrecedora da pobreza e de digressões sentimentais sobre o comportamento desviante dos

personagens, que deixam transparecer as opiniões pessoais e a ideologia esquerdista do autor.

Ao compor o longo enredo de sua penny blood, G. W. M. Reynolds também recebeu

influências de um enorme sucesso literário que havia despontado alguns anos antes fora da

Inglaterra. Sendo um grande admirador da literatura francesa,127 aparentemente se abasteceu

de ideias durante os anos precedentes ao lançamento de sua obra principal lendo Les Mystères

de Paris, de Eugène Sue, obra consolidadora do gênero roman-feuilleton serializada entre

junho de 1842 e outubro de 1843 no Journal des Débats. Aliás, ele mesmo faz uma referência

a esse romance no segundo volume de The Mysteries of London: “Não há uma parte de Paris

que possa se comparar ao Mint no que se refere a sordidez, imundície ou depravação moral;

nada – nem mesmo a rua da Île de

,

la Cité onde Eugene Sue ambientou seu célebre tapis-

franc.”128

Embora isto seja apenas uma suposição, é provável que Reynolds tenha se inspirado

em Sue para além de sua obra, uma vez que a vida pessoal do escritor francês se assemelhava

com a sua própria em determinados aspectos. Por ter nascido de uma linhagem de médicos,

esperava-se que o jovem Sue seguisse na mesma profissão do pai, que o alistou como

ajudante de cirurgião na marinha de guerra. Na ocasião, foi às Antilhas e se deparou com o

mundo dos escravos, dos marinheiros e dos corsários, o que lhe deu a ideia de escrever

romances marítimos. Com a morte do pai, herdou uma boa fortuna e voltou para Paris,

transformando-se em um dandy vaidoso e ostentador; depois de gastar todo o seu dinheiro,

começou a escrever folhetins para ganhar a vida e bancar seus caprichos. Ao verter a

“tragédia das classes populares” na sua escrita, porém, decidiu se converter ao socialismo, e

costumava inclusive se vestir de operário e perambular pelas favelas parisienses como uma

forma de alimentar sua imaginação.129 Publicou um vasto número de romances e peças

teatrais, bem como obras políticas e de assuntos diversos, até o fim de sua vida, mas foi o seu

romance de mistérios, lido e apreciado por pessoas de todas as classes sociais na França, que

fez dele um autor popular e um exemplo para os escritores que desejavam ganhar fama e

dinheiro.

127 Tal como Dick Collins afirma de maneira bem-humorada em seu resumo bibliográfico sobre o autor,

“Reynolds has read a lot more French literature than the Law of England would allow at the time, and wants us

all to know it.” COLLINS, “A Biographical Sketch”, pos. 704.

128 “There is no part of Paris that can compare with the Mint in squalor, filth, or moral depravity; — no — not

even the street in the Island of the City, where Eugene Sue has placed his celebrated tapis-franc.”

REYNOLDS, G. W. M. The Mysteries of London [1844-8], Vol. 2. Disponível em:

. Acesso em: 30 de janeiro de 2015.

129 MEYER, Marlyse. Folhetim: Uma História. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, pp.70-74.

61

Tal como sua “contraparte” inglesa, Les Mystères de Paris explora a miséria e o

crime na capital francesa e revela os segredos, as intrigas e as conspirações que permeiam a

sociedade parisiense. Algumas semelhanças entre essas duas obras são bastante evidentes,

como a ambientação de seus enredos em grandes capitais mundiais, a ênfase nos efeitos

produzidos pelos contrastes sociais dentro do espaço urbano e o projeto de desvendar

“mistérios da cidade”, mas ainda há outras mais especificamente relacionadas ao modo de

representação empregado por seus autores. Em seu breve estudo sobre a literatura de mercado,

no qual usa o folhetim de Eugène Sue como exemplo, Muniz Sodré aponta alguns aspectos

presentes nele que também podem ser encontrados na penny blood de G. W. M. Reynolds. O

primeiro deles é o mítico, que diz respeito aos arquétipos heroicos representados por Richard

Markham, cuja conduta impecável o transforma em um príncipe, e por Rodolphe de

Gérolstein, um príncipe bom e justo que sai às ruas parisienses ajudando os pobres e

defendendo os inocentes dos malfeitores; ambos se colocam acima das fraquezas humanas e

das leis sociais – e, sobretudo, acima de seus títulos de nobreza – em nome do bem maior, e

por isso, representam modelos a serem seguidos. O segundo é a atualidade informativo-

jornalística, isto é, a necessidade de informar e atualizar o leitor sobre fatos e ocorrências da

época de maneira fácil e acessível: ambos os autores tecem longas críticas sobre os problemas

das instituições públicas; Reynolds, aliás, adiciona em sua narrativa gráficos e notícias

veiculados nos jornais como uma forma de corroborar as situações chocantes que relata

ficcionalmente. Disso deriva o pedagogismo, o terceiro aspecto, que corresponde à intenção

de ensinar algo e de explicitar as convicções ideológicas do autor: tanto Reynolds quanto Sue

pregavam a favor das reformas sociais e contra o conflito de classes e imprimiram suas visões

progressistas em seus respectivos romances, principalmente através de seus protagonistas. O

quarto aspecto, por fim, é a retórica culta ou consagrada, que se refere ao uso de um modo de

escrita já experimentado, sem inovação de linguagem nem de estilo, e que repete estereótipos

da literatura anterior, tais como o herói divino, o vilão satânico – é o caso do Resurrection

Man e da Chouette –, a mocinha decaída – Ellen Monroe e Fleur-de-Marie –, a mulher fatal –

Lady Cecilia Harborough e a condessa Sarah Mac Gregor –, a estrutura tensão/afrouxamento,

etc.130

Todavia, ao mesmo tempo em que compartilham os elementos mencionados acima,

The Mysteries of London e Les Mystères de Paris apresentam diferenças importantes no que

concerne às suas pretensões de fazer uma denúncia social. Ao retratarem as condições

130 SODRÉ, Muniz. Best-seller: a literatura de mercado. São Paulo: Ática, 1985, pp. 8-9.

62

deploráveis das favelas e o submundo do crime com tanto realismo, Reynolds e Sue tinham o

propósito comum de não só chamar a atenção do leitor para a realidade que o cercava, mas

também de gerar nele emoção e empatia, ou mesmo reconhecimento, pela triste existência dos

mais necessitados e dos que se degeneravam pelas circunstâncias desfavoráveis. Tal como

afirma Berry Chevasco em sua análise comparativa das duas obras,

[o] romance de Sue expõe os horrores da vida dos pobres em Paris de modo a

despertar a simpatia e a reação dos que estão no poder e a encorajar a reforma

humanitária. [...] A premissa fundamental de Sue em Les Mystères de Paris é a de

que as classes dominantes são essencialmente bem-intencionadas e humanas. A

injustiça social e as privações da pobreza existem porque a maior parte daqueles que

estão no poder desconhece a urgência dos problemas que as outras parcelas da

sociedade sofrem. Uma vez que se conscientizem da aflição e do desespero dos

pobres, Sue acreditava que seus leitores ricos não hesitariam em agir por uma

sociedade melhor.131

Reynolds, entretanto, tinha uma visão bem diferente sobre essa questão. Sendo um

partidário do Movimento Cartista, ele acreditava no potencial da classe trabalhadora de exigir

e promover ela mesma as reformas sociais de que necessitava; por isso, tal como Dick Collins

ressalta, “Reynolds via que os problemas da sociedade iam muito além de um privilégio

injusto; e, tendo sentido na pele a pobreza, ele não acreditava que esses problemas pudessem

se resolver [...] com uma mudança de atitude dos ricos”.132 Enquanto um manifestava a ideia

sentimental e até mesmo ingênua de que, assim como o protagonista de seu folhetim, os ricos

se mobilizariam em prol da igualdade social, o outro, em conformidade com seu radicalismo,

se fiava no despertar da consciência e da ação popular. Em razão disso, a obra de Sue, por

tratar o assassino e a prostituta (personificados por Le Chourineur e Fleur-de-Marie,

respectivamente, os protegidos do príncipe Rodolphe) sem nenhum moralismo, teria um tom

mais romântico e um estilo mais elegante,133 e como consequência, um apelo emocional

maior; a obra de Reynolds, por sua vez, em suas descrições cruas do crime e da miséria, em

seus discursos dosados pelo sensacionalismo e em suas representações do vilão puramente

131 “Sue’s novel exposes the horrors of the lives of the Parisian poor in order to rouse the active sympathy of

those in power and to encourage humanitarian reform. […] Sue’s fundamental premise in Les Mystères de

Paris is that the ruling classes are essentially well meaning and humane. Social injustice and the deprivations

of poverty exist because

,

those in power are largely ignorant of the urgency of the problems suffered by other

parts of society. Once they are made aware of the distress and desperation of the poor, Sue felt that his rich

readers could not fail to respond to improve society.” CHEVASCO, Berry. “Lost in Translation: The

Relationship between Eugène Sue’s Les Mystères de Paris and G.W.M. Reynolds’s The Mysteries of London”.

In: HUMPHERYS, Anne; JAMES, Louis (Eds.). G. W. M. Reynolds: Nineteenth-Century Fiction, Politics, and

the Press. Hampshire: Ashgate Publishing Limited, 2008, p. 140.

132 “Reynolds saw that society’s problems went much farther than an unfair franchise; and, having experienced

poverty at first hand, he did not believe that those problems could be solved […] by the rich having a change of

heart.” COLLINS, “A Biographical Sketch”, pos. 867-872.

133 CHEVASCO, op. cit., p. 137.

63

perverso e da mulher sensualizada (tais como o Resurrection Man e a vaidosa Ellen Monroe)

buscaria não só tocar, mas principalmente chocar o leitor.

Para Chevasco, as semelhanças temáticas entre The Mysteries of London e Les

Mystères de Paris são totalmente superficiais, e a relação entre os dois romances se deu

principalmente por intermédio da imprensa inglesa, que, sujeitando-se ao conservadorismo da

época e baseando-se na recepção negativa do primeiro no próprio país, pretendia categorizar a

ambos como um tipo de ficção de massa da pior espécie.134 Seus argumentos são pertinentes,

mas como se pôde perceber, ainda que muito brevemente, as influências que Eugène Sue

exerceu em G. W. M. Reynolds para a composição de sua penny blood e também para sua

caracterização como escritor de mistérios urbanos são claras. Ambas as obras cumpriram

papéis importantes na popularização da ficção de massa em seus respectivos contextos

sociais; ambas, sobretudo, ficaram marcadas como grandes retratos, ainda que perturbadores,

da nova cidade que vinha se construindo, e nesse sentido, tanto Reynolds quanto Sue podem

ser considerados “escritores que transformam em epopeia o universo burguês instaurado pela

indústria e pela glória napoleônica”.135

2.3 Das favelas aos palácios: perspectivas do gótico urbano

Conforme explicado no capítulo anterior, o gótico urbano surgiu a partir da

domesticação do gênero gótico tradicional, que, em geral, remetia a tempos passados e

distantes, para a atualidade vivida pelo leitor vitoriano, ligada, portanto, às transformações

gerais que impactaram a cidade. Entretanto, ao mesmo tempo em que se modernizava, o

gótico urbano não deixava de conjurar elementos marcantes do gótico tradicional em suas

manifestações na literatura, tais como a presença de segredos terríveis que ameaçam vir à tona

e assim atormentar a todos os personagens que se encontram envolvidos com eles, a sensação

desesperadora de estar aprisionado em uma rede de intrigas e conspirações e a experiência

constante de perigo.

Os segredos desvendados pelas narrativas do gótico urbano, entretanto, não são os

mesmos que permeiam as narrativas do gótico tradicional. Conforme explica Louis James,

[o] materialismo da vida urbana rejeitava a superstição e o ocultismo da história

gótica tradicional, e à medida que os castelos sombrios e a paisagem italiana da Sra.

Radcliffe e de Monk Lewis perderam seu poder para o suspense, os escritores se

134 Ibidem, p. 146.

135 SODRÉ, op. cit., p. 23.

64

voltaram para os mistérios que os rodeavam, escondidos em becos escuros, nas celas

e em prédios fechados das ruas da cidade. Os monges demoníacos deram lugar a

ladrões e salteadores; as intrigas da Inquisição foram substituídas por forças secretas

e obscuras organizadas por ricos e pobres por detrás da rede da vida urbana.136

The Mysteries of London é uma penny blood bastante representativa do gótico

urbano, especialmente por retratar a cidade como um espaço de tensão entre os mundos da

pobreza e da riqueza. Embora se oponham em praticamente todos os aspectos, os dois se

conectam pela criminalidade, o grande mal da sociedade moderna, uma vez que, nesse

romance, o malfeitor se forma a partir dos traumas da miséria mas também dos caprichos da

ambição; desse modo, a classe baixa e a classe alta vivem em um conflito que, apesar de sua

perenidade, se desfaz pelas ligações suspeitas e pelos segredos obscuros que compartilham. A

partir desse processo constante de fragmentação e desfragmentação, praticamente toda a

Londres se transforma em um submundo misterioso repleto de armações das quais não se

pode escapar – e é no “peso intolerável” do segredo gótico que residem todos os horrores da

cidade.137 Os parágrafos seguintes, portanto, analisam como o gótico urbano se desenvolve

nessa obra a partir desses contrastes e de outros elementos que o compõem.

2.3.1 Os vilões: o bandido e o transgressor

De todas as figuras típicas do gótico, talvez a mais importante seja a do vilão, de

modo que se torna muito difícil imaginar uma narrativa pertencente a esse gênero sem ele,

que, em toda sua ambição perversa, é o perpetrador de todos os males que acometem suas

vítimas, e por isso, se configura como uma fonte do perigo e do horror que caracterizam o

gótico em todas as suas variações. O vilão que reside na cidade moderna, no entanto, é

diferente daquele que habita castelos ermos em um país estrangeiro: ele pode ter de fato um

status social diferenciado, tal como o aristocrata que muitas vezes personifica o vilão no

gótico tradicional, mas é sobretudo um cidadão comum que de alguma forma transgride as

normas da sociedade.

O grande vilão de The Mysteries of London é o Resurrection Man, cujo nome

verdadeiro é Anthony Tidkins. Seu apelido ostensivo deriva de uma atividade não muito

136 “The materialism of city life rejected superstition and the occult world of the traditional gothic story, and as

the dark castles and Italianate landscape of Mrs. Radcliffe and Monk Lewis lost their power to thrill, writers

turned to the mysteries that lay all around them, hidden down darkened alleys, in the cellars and shuttered

buildings of the city streets. Demonic monks were exchanged for thieves and footpads; the intrigues of the

Inquisition were replaced by the dark secret forces, organized by both rich and poor, behind the web of city

life.” JAMES, op. cit., pos. 147.

137 MAXWELL, JR., op. cit., p. 188.

65

digna: ele é um ladrão de cadáveres, cujos serviços são particularmente valiosos para

médicos, mas quando não há demandas para isso, ele comete outros crimes por encomenda.

Sua descrição por si só é um tanto assustadora:

O indivíduo era um homem bem baixo e magro e tinha uma aparência cadavérica,

com cabelos e costeletas pretos como carvão e olhos escuros e penetrantes meio

escondidos por sobrancelhas desgrenhadas da cor do azeviche. Aparentava uns trinta

e cinco anos de idade. Mantinha a cabeça baixa, e falava como se não pudesse

suportar o olhar de seu interlocutor. Vestia um paletó preto surrado e um boné de

oleado com aba larga.138

Sua aparência exterior denuncia muitas coisas sobre o personagem. Note-se, por

exemplo, que ela se adequa inteiramente à sua profissão: sua fisionomia se assemelha a de um

cadáver, suas roupas são fúnebres e sua expressão corporal suspeita parece, de certa forma,

com a de alguém que está de luto. Há tantas referências à morte reunidas no personagem que

logo se depreende que seus outros crimes se relacionam com assassinato; à medida que a

narrativa avança, porém, descobre-se que seus delitos vão desde assaltos a execução de

pessoas, e que ele trabalha tanto em proveito próprio quanto em conluio com a aristocracia, o

que representa, desse modo, a aliança criada entre os poderosos e os criminosos para explorar

os inocentes.139

Outro aspecto que caracteriza

,

o Resurrection Man como um vilão gótico é o seu ódio

transcendental pelo herói Richard Markham, com quem havia compartilhado a mesma cela

em Newgate. A hostilidade entre os dois nasce quando, um dia, o criminoso pede ao rapaz

certa quantia em dinheiro em troca de seu silêncio sobre a prisão e esse resiste à chantagem,

mesmo sabendo do risco de ser “denunciado” para a família da Princesa Isabella. A partir de

então, o Resurrection Man declara vingança e faz de tudo para arruinar a vida de Richard,

que, por sua vez, tenta colocar o outro atrás das grades definitivamente, como uma forma de

fazer justiça a toda a sociedade. O conflito entre os dois corresponde à perseguição implacável

do vilão e à sensação de paranoia da vítima que são típicas do gótico e que têm a ver com o

desejo perverso daquele de exercer seu poder sobre o outro, retendo-o pela ameaça e pelo

medo de ser destruído.

138 “This individual was a very short, thin, cadaverous-looking man, with coal-black hair and whiskers, and dark

piercing eyes half concealed beneath shaggy brows of the deepest jet. He was apparently about five and thirty

years of age. His countenance was down cast; and when he spoke, he seemed as if he could not support the

glance of the person whom he addressed. He was dressed in a seedy suit of black, and wore an oil-skin cap

with a large shade.” REYNOLDS, op. cit., pos. 4627.

139 HUMPHERYS, Anne. “An Introduction to G.W.M. Reynolds’s ‘Encyclopedia of Tales’”. In: HUMPHERYS,

Anne; JAMES, Louis (Eds.). G. W. M. Reynolds: Nineteenth-Century Fiction, Politics, and the Press.

Hampshire: Ashgate Publishing Limited, 2008, p. 130.

66

O Resurrection Man é um homem tão inescrupuloso que desrespeita até mesmo o

“código de conduta” de sua classe criminosa, sendo capaz de trair seus próprios comparsas de

crime para escapar da prisão; foi num caso desses que o assaltante Crankey Jem foi

condenado ao exílio na Austrália em seu lugar, onde sofreu punições físicas severas e

testemunhou cenas brutais de violência e de canibalismo. O fato de desconsiderar as pessoas

sem nenhum arrependimento leva a crer que tenha agido assim desde sempre, mas na verdade,

ele foi se transformando aos poucos. Assim como tantos outros personagens do romance, ele é

fruto de uma vida pregressa marcada por infortúnios que o desnaturalizaram e o conduziram

ao caminho tortuoso do crime. Ao narrar sua história pessoal, ele revela como se rebelou

contra a virtude depois de ser escorraçado pela sociedade por ser filho de um criminoso,

apesar de todos os seus esforços para trabalhar e viver honestamente, e como finalmente se

rendeu à atividade de roubar cadáveres com seu pai; ele explica, ainda, como suas

experiências contribuíram para que se tornasse mau e violento:

– Eu passei dois anos preso em um navio e não me endureci; contrabandeei,

roubei cadáveres e não me endureci; mas o mês em que fiquei na esteira me

endureceu – e me endureceu completamente! Eu não conseguia ver nenhuma

vantagem em ser bom. Eu não conseguia encontrar nenhum incentivo para ser

honesto. Quanto a desejar ter uma vida respeitável, isso era absurdo. Eu ria da ideia

com desdém, e jurei a mim mesmo que me tornaria um demônio impiedoso quando

de fato mergulhasse numa carreira criminosa. Ah, como eu detestava o nome da

virtude! “Os ricos veem os pobres como répteis degenerados que nascem da infâmia

e que simplesmente não possuem bons instintos”, eu pensava comigo mesmo.

“Deixe um homem rico acusar um homem pobre perante a justiça e veja a rapidez

com que o pobre infeliz é condenado! A aristocracia abominava e se horrorizava

com as classes baixas. A legislação pensa que se não fizer as leis mais avassaladoras

para reprimir os pobres, eles vão se levantar e cometer as atrocidades mais

inimagináveis. Na verdade, os ricos estão dispostos a acreditar em qualquer infâmia

que recaia sobre os pobres”. Era assim que eu pensava, e aguardava o dia em que

seria solto com uma alegria intensa – enlouquecedora – inebriante!140

G. W. M. Reynolds destina muitos capítulos de seu romance a longos relatos

pessoais de seus personagens pobres ou criminosos, nos quais eles mostram que são

140 “‘I had been two years at the hulks, and was not hardened: I had been a smuggler and a body-snatcher, and

was not hardened: – but this one month’s imprisonment and spell at the treadmill did harden me – and

hardened me completely! I could not see any advantage in being good. I could not find out any inducement to

be honest. As for a desire to lead an honourable life, that was absurd. I now laughed the idea to scorn; and I

swore within myself that whenever I did commence a course of crime, I would be an unsparing demon at my

work. Oh! how I then detested the very name of virtue. ‘The rich look upon the poor as degraded reptiles that

are born in infamy and that cannot possibly possess a good instinct,’ I reasoned within myself. ‘Let a rich man

accuse a poor man before a justice, a jury, or a judge, and see how quick the poor wretch is condemned! The

aristocracy hold the lower classes in horror and abhorrence. The legislature thinks that if it does not make the

most grinding laws to keep down the poor the poor will rise up and commit the most unheard-of atrocities. In

fact the rich are prepared to believe any infamy which is imputed to the poor.’ It was thus that I reasoned; and I

looked forward to the day of my release with a burning – maddening – drunken joy!” REYNOLDS, op. cit.,

pos. 12478-12484.

67

motivados a mendigar ou roubar pela necessidade e pelo desespero, e não pela vagabundagem

ou pela maldade latente; com isso, o autor expressa a opinião de que a miséria e o crime são

resultados da desigualdade social promovida por um governo opressor, e consequentemente,

procura fazer com que os leitores se penalizem. Todavia, parece não ser esse o seu objetivo ao

dar voz a Anthony Tidkins, que, alimentando revolta e vingança, se entregou ao crime

deliberadamente. Por meio desses relatos, os personagens ganham de certa forma a

oportunidade de se redimirem e de provarem que todos têm qualidades e defeitos; mas o

vilão, aproveitando-a mal, demonstra que é um personagem inteiramente enegrecido pela

maldade, tal como ele próprio diz:

– [...] Mas eu já não pensava mais em honestidade: saí da prisão um facínora

confirmado. Eu não tinha dinheiro nenhum – consciência nenhuma – medo nenhum

– esperança nenhuma – amor nenhum – amigo nenhum – simpatia nenhuma –

sentimento nenhum. Minha alma tinha se convertido para a escuridão do inferno!141

O Resurrection Man, portanto, não evoca simpatia porque escolheu ser mau, mas,

contrariamente, deveria gerar pelo menos compreensão por parte dos outros.142 Quanto a isso,

David Punter e Glennis Byron atentam para a reação ambivalente que se tem ao assassino –

especialmente ao assassino que repete o ato, como é o caso dele:

Embora “empatia” não seja exatamente a palavra para descrever a reação estimulada

pelas narrativas de assassinos em série, muitas vezes há certa ambivalência nas

representações desses monstros modernos. Frequentemente visto como sintoma de

uma sociedade cada vez mais violenta e alienada, o assassino em série parece

demandar a reafirmação das normas sociais e dos valores conservadores mais

enfáticos dentro do texto.143

Ao se justificar pelo vilão que é, mas ao mesmo tempo declarar que não merece a

simpatia de ninguém, ele reforça a ideia largamente aceita pela sociedade – principalmente a

vitoriana – de que o correto é viver de acordo com as regras da virtude; porém, também

reserva para si o direito de se voltar contra ela, conforme complementam os autores:

141 “‘[…] But I now no more thought of honesty: I went out of prison a confirmed

,

ruffian. I had no money – no

conscience – no fear – no hope – no love – no friendship – no sympathy – no kindly feeling of any sort. My

soul had turned to the blackness of hell!” REYNOLDS, op. cit., pos. 12490.

142 Que, nesse caso, são os leitores, já que os reais ouvintes da história pessoal do Resurrection Man são outros

criminosos reunidos no boozing-ken.

143 “While ‘sympathy’ is not precisely the word to describe the response encouraged by serial killer narratives,

there is often nevertheless a certain ambivalence in the representations of these modern monsters. Often seen as

symptomatic of an increasingly violent and alienated society, the serial killer might seem to call for the most

emphatic reassertion of social norms and the strongest reaffirmation of conservative values within the text.”

PUNTER; BYRON, op. cit., p. 265.

68

Em vez de se estabelecer como o outro demoníaco em contraposição à sociedade em

geral, o monstro é explicitamente identificado como o produto lógico e inevitável

dela: é a sociedade, e não o indivíduo, que se torna uma fonte primária do horror.

Esses assassinos são raramente responsabilizados, e a atenção é direcionada tanto

para as instituições que criam esses monstros quanto os próprios assassinos.144

Ainda que todas essas considerações sejam válidas, não se pode negar que o

Resurrection Man causa animosidade: seu desprezo à virtude e sua tendência ao vício

evidenciam um tipo de imoralidade que põe em risco as vidas de outras pessoas. No entanto, o

que ele mais provoca é repugnância acima de tudo, e isso se deve principalmente às

particularidades de sua profissão. Note-se, aliás, que Punter e Byron usam os termos

“assassino” e “monstro” de maneira intercambiável, o que guarda uma razão especial no caso

desse personagem. Tradicionalmente, o monstro é uma criatura cuja constituição anormal –

geralmente marcada por deformações físicas, poderes sobrenaturais e malignidade extrema –

desafia qualquer tentativa de classificá-lo no escopo do conhecimento humano, e por isso,

mexe com os medos e as ansiedades mais profundamente guardados na mente.145 Embora o

vilão do gótico urbano não seja literalmente um monstro, seus atos desviantes não deixam de

ter uma carga de monstruosidade, uma vez que desafiam os conceitos de normalidade e

também de humanidade construídos culturalmente pela sociedade onde ele se insere,146 e

então, passa a ser identificado com figuras monstruosas. A associação que o Resurrection

Man mantém com cemitérios e com a morte, por exemplo, o aproxima de certa forma ao

ghoul, uma criatura ou espírito do mal originário da mitologia árabe que invade sepulturas

para se alimentar de carne humana.147 O Resurrection Man não é de fato um canibal, mas ele

permite que outras pessoas “consumam” os cadáveres que rouba como uma mercadoria, o que

constitui um ato de dessacralização do corpo humano tão horrendo que pode ser visto como

um tipo de monstruosidade. A fronteira entre o humano e o monstro que se estabelece na

144 “Rather than being established as the demonic other to mainstream society, the monster is explicitly identified

as that society’s logical and inevitable product: society, rather than the individual, becomes a primary site of

horror. These killers are rarely made accountable, and attention is directed as much to the institutions that

create such monsters as to the killers themselves.” PUNTER; BYRON, op. cit., p. 266.

145 Quanto a essa particularidade do monstro, Jeffrey Jerome Cohen afirma: “This refusal to participate in the

classificatory ‘order of things’ is true of monsters generally: they are disturbing hybrids whose externally

incoherent bodies resist attempts to include them in any systematic structuration. And so the monster is

dangerous, a form suspended between forms that threatens to smash distinctions.” COHEN, Jeffrey Jerome.

Monster Theory: Reading Culture. Minneapolis: University of Minnesota, 1996, p. 6.

146 “Through difference, whether in appearance or behaviour, monsters function to define and construct the

politics of the ‘normal’. Located at the margins of culture, they police the boundaries of the human, pointing to

those lines that must not be crossed.” PUNTER; BYRON, op. cit., p. 263.

147 Por extensão, o termo ghoul, na linguagem popular, passou a designar depreciativamente coveiros e ladrões

de cadáveres, bem como pessoas que simplesmente se interessam pelo macabro Para mais detalhes sobre as

acepções do termo ghoul, ver o verbete na página do site Merriam-Webster. Disponível em:

. Acesso em: 02 de fevereiro de 2015.

69

figura desse vilão, nesse sentido, potencializa o efeito de horror presente no gênero gótico

como um todo.

Como se a presença do Resurrection Man já não fosse suficiente para representar a

vilania presente na cidade, The Mysteries of London ainda conta com George Montague

Greenwood – a identidade falsa assumida por Eugene Markham – no papel do vilão gótico

megalomaníaco. Ao contrário do Resurrection Man, que age com as próprias mãos ao cometer

crimes, ele se enquadra no tipo de criminoso que atua discretamente, no conforto de sua

luxuosa mansão, manipulando a razão e o sentimento das pessoas, arquitetando planos para

tirar vantagem daqueles que considera inferiores e acionando subordinados (inclusive o

próprio ladrão de cadáveres e seus colegas de assalto) para fazer o trabalho sujo; além disso,

em total oposição ao outro, ele é carismático e atraente:

George Montague era um homem jovem, alto e bonito de vinte e três ou vinte e

quatro anos. Seus cabelos e olhos eram negros, sua pele um tanto morena, e seus

traços perfeitamente regulares.

Suas maneiras eram certamente polidas e agradáveis, mas havia um quê de reserva e

de mistério nele – uma ansiedade por desviar a conversa de qualquer assunto

relacionado a ele mesmo – um desejo intencional de agradar e de obter boas

opiniões daqueles à sua volta por meio de elogios muitas vezes obsequiosos demais

– e uma revelação ocasional de sua crença em um código moral não de todo

consistente com o bem-estar da sociedade, o que constituía traços em seu caráter de

modo algum calculados para fazerem dele um favorito entre todas as classes de

pessoas. Ele era, contudo, bem informado sobre a maioria dos assuntos, ávido por

causar sensação no mundo, não importando por quais meios, resoluto em sua busca

pela riqueza e indiferente a se os caminhos que levam aos seus objetivos são

tortuosos ou direitos. Apesar de viciado pelo prazer, nunca permitiu que isso

interferisse em seus negócios ou estragasse seus esquemas. O amor para ele era

meramente uma lisonja da beleza e a amizade simplesmente um laço que o

conectava com aqueles que eram necessários para ele. Ele era completamente

egoísta, mas de uma forma ou de outra possuía tato suficiente para esconder seus

defeitos – dos quais ele era bem consciente. A consequência disso tudo era que ele

era geralmente bem-vindo como um bom camarada; alguns chegavam ao ponto de

declarar que ele era um “sujeito danado de bom”, e todos admitiam que ele era um

diligente homem do mundo.148 (grifos no original)

148 “GEORGE MONTAGUE was a tall, good-looking young man of about three or four-and-twenty. His hair and

eyes were black, his complexion rather dark, and his features perfectly regular.

His manners were certainly polished and agreeable; but there was, nevertheless, a something reserved and

mysterious about him – an anxiety to avert the conversation from any topic connected with himself – a studied

desire to flatter and gain the good opinions of those about him, by means of compliments at times servile – and

an occasional betrayal of a belief in a code of morals not altogether consistent with the well-being of society,

which constituted

,

features in his character by no means calculated to render him a favourite with all classes of

persons. He was, however, well-informed upon most topics, ambitious of creating a sensation in the world, no

matter by what means; resolute in his pursuit after wealth, and careless whether the paths leading to the objects

which he sought were tortuous or straightforward. He was addicted to pleasure, but never permitted it to

interfere with his business or mar his schemes. Love with him was merely the blandishment of beauty; and

friendship was simply that bond which connected him with those individuals who were necessary to him. He

was utterly and completely selfish; but he was somehow or another possessed of sufficient tact to conceal most

of his faults – of the existence of which he was well aware. The consequence was that he was usually

70

Tal como o vilão que anseia pelo poder pelo mero prazer de se sentir poderoso,

George Montague (que só depois adiciona o sobrenome Greenwood) costuma se gabar de

suas conquistas para si mesmo depois de constatar que seus esquemas estão se desenrolando

da maneira esperada como uma forma de se assegurar em relação à posição social privilegiada

que ocupa:

– Eu me iniciei nesse mundo sem nenhum tostão e sem nenhuma experiência

nos caminhos tortuosos da sociedade – e o que sou agora? O dono de sessenta mil

libras! Alguns anos atrás, dormia em cafés e pagava oito pence por noite para ter

uma cama; tomava café da manhã por três pence e meio penny; jantava por dez

pence; e ceava por dois pence. Agora, as iguarias dos quatro cantos do mundo

estimulam meu paladar em todas as refeições. Quando comecei minha carreira,

minhas transações não passavam de malandragens; agora, eu jogo minhas cartas

falsas e consigo um bolo de dinheiro em uma jogada. Uma vez, comprei um casaco

por doze shillings na Rua Holywell; agora, não há um alfaiate no West End que não

dê crédito a George Greenwood. Minha riqueza compra qualquer tipo de prazer. Eu

posso oferecer mil guineas para a mulher que, sendo filha de um nobre e esposa de

um barão, se joga nos meus braços. [...] Eu me tornarei um membro do parlamento –

Lorde Tremordyn pode conseguir um baronato para mim facilmente em pouco

tempo – e então, a nobreza não será um nível alto demais a se aspirar!149

Sendo um egoísta incurável desde cedo, ele aplica sua astúcia obedecendo à sua

ambição de se tornar um aristocrata; seu dinheiro e seu status servem exclusivamente para

satisfazer seus caprichos e ostentar seu sucesso. Na verdade, Greenwood não se caracteriza

como um vilão perverso cujo desejo é fazer o mal: ele é essencialmente um hedonista que

obtém seus prazeres materiais e sensuais por meio da desonestidade e da sedução. Não faz

questão sequer de saber quem são as vítimas de suas especulações, contanto que os infelizes

lhe rendam muito dinheiro; em se tratando de mulheres, porém, prefere conhecer seus nomes

e suas origens a fim de se rejubilar em sua vaidade. Consciência de que esteja prejudicando

pessoas ele certamente tem, mas, paradoxalmente, sua intenção não parece ser a de colecionar

presas, tampouco marcar inimigos e arruiná-los; ao privar os homens de suas propriedades, e

welcomed as an agreeable companion; some even went so far as to assert that he was a ‘devilish good fellow;’

and all admitted that he was a thorough man of the world.” REYNOLDS, op. cit., pos. 1408-1427.

149 “‘I began the world without a shilling, and at an age when I had no experience in the devious ways of society;

– and what am I now? The possessor of sixty thousand pounds! A few years ago I slept in coffee-houses,

paying eight-pence a night for my bed: I breakfasted for three-pence halfpenny; dined for ten-pence; and

supped for two-pence. Now the luxuries of the four quarters of the world tempt my palate at every meal. At the

outset of my career, my transactions were petty rogueries: now I play my false cards to produce me thousands

at a stake. I once purchased my coat for twelve shillings in Holywell-street; there is not now a tailor at the

west-end who will not give credit to George Greenwood. My wealth purchases me every kind of pleasure. I

can afford to bestow a thousand guineas upon the woman, who, daughter of a peer, and wife of a baronet,

throws herself into my arms. […] I shall be a member of parliament: Lord Tremordyn can easily obtain for use

a baronetcy in due time; – and then, the peerage is not a height too difficult to aspire to!” Ibidem, pos. 9600-

9612.

71

também ao se aproveitar das mulheres, ele atua como um oportunista extremamente

ganancioso cujos objetivos não vão além de aumentar sua riqueza e se render à luxúria. No

entanto, Greenwood acaba de fato se transformando no causador de todas as atribulações

sofridas pelos personagens “bons” e, principalmente, pelo herói do romance: é ele, por

exemplo, quem faz da Sra. Arlington uma concubina; é ele quem, entregando seus segredos

políticos e depois roubando todo o seu dinheiro, faz com que o republicano Thomas

Armstrong seja preso; é ele quem tenta estuprar Eliza Sydney, a bela moça que, assim como

Richard, foi ludibriada por dois oportunistas e presa injustamente; é ele quem deixa o Conde

Alteroni, Príncipe de Castelcicala e pai da Princesa Isabella, à beira da falência; é ele quem

deflora Ellen Monroe, a qual ele conhecia desde criança, nas tentativas da moça de obter

sustento com sua beleza, e, por conseguinte, é dele o filho que ela tem fora do matrimônio; e,

como resultado de uma peça pregada pelo destino, é para ele que o Sr. Monroe, pai de Ellen e

tutor de Richard, perde suas propriedades e a fortuna deixada pelo pai dos dois irmãos.

A partir das observações feitas sobre esses dois personagens, percebe-se que eles

apresentam diferenças – em termos de aparência, motivação e modus operandi – e também

semelhanças – a falta de escrúpulos e a escolha deliberada pela vida criminosa. No que se

refere à representação da vilania, entretanto, ambos se distinguem por nuances notórias

relacionadas à natureza de seus crimes: o assassinato e a violação de túmulos, por exemplo,

são geralmente tidos como atrocidades que só uma pessoa muito cruel seria capaz de cometer,

o que classifica o Resurrection Man como um bandido quase demoníaco; a apropriação de

bens alheios e a sedução de mulheres virtuosas, por sua vez, são atos que vão contra a

moralidade, o que coloca George Montague Greenwood na posição de um transgressor mau-

caráter. Essa distinção se estende, ainda, a nuances relacionadas ao método de execução seus

crimes: aqueles perpetrados pelo vilão da classe baixa tende a ser brutal, enquanto os do vilão

da classe alta podem ser realizados com certo “requinte”. Com isso, pode-se dizer que o

Resurrection Man, associado como está à monstruosidade, é um vilão típico do gênero gótico,

e Greenwood, que mistura garbo e ambição, é um vilão mais característico do melodrama.

Essa justaposição de dois vilões distintos, portanto, dá respaldo ao que The Mysteries of

London se propõe a mostrar: que o crime se encontra em todos os cantos da grande metrópole

mundial.

72

2.3.2 O crime: a corrupção e a decadência da sociedade londrina

De acordo com Punter e Byron, “[o] gótico é frequentemente considerado um gênero

que ressurge com força particular em tempos de crise cultural e que serve para negociar as

ansiedades da época lidando com elas de forma deslocada”.150 No período vitoriano, essas

ansiedades se encontravam especificamente relacionadas à criminalidade generalizada que

vinha crescendo na cidade e que mantinha a sociedade como um todo refém de seus efeitos

nocivos.

Como não poderia deixar de ser, The Mysteries of London representa a capital

inglesa

,

como o lugar onde ela mais se concentra, chegando a transformar a típica neblina que

a encobre como uma metáfora para essa realidade tida como vergonhosa e revoltante:

E, como se escondesse sua infâmia dos céus, essa cidade se recobre com uma nuvem

permanente que nem mesmo a brisa fresca da manhã consegue dissipar, nem por um

momento do dia!”151

Com isso, sugere-se que Londres está tão irremediavelmente tomada pela

criminalidade que sequer a probidade ainda existente nela tem o potencial de erradicá-la:

apresentando-se sob formas diversas e apavorantes, ela se caracteriza como um pânico moral,

e assim, representa um dos grandes horrores que emanam do ambiente urbano.

Uma das premissas que regem esse romance é a de que o crime opera amplamente,

não só nas favelas, onde ele se mostra particularmente propício por causa da pobreza, mas

também nos grandes palácios que fazem parte da história da cidade. Além disso, ele não

acontece de maneira isolada, como se um criminoso desconhecido o tivesse cometido uma só

vez e depois sumido no mundo, e sim de maneira organizada, com criminosos fixos que se

reúnem secretamente para perpetrá-lo e vítimas cuidadosamente selecionadas. Desse modo, o

crime se configura como uma força implacável que retém os cidadãos londrinos a todo o

momento, desviando-os de suas trajetórias cotidianas e minando seus esforços para

sobreviverem decentemente em um lugar tão perigoso quanto Londres.

150 “The Gothic is frequently considered to be a genre that re-emerges with particular force during times of

cultural crisis and which serves to negotiate the anxieties of the age by working through them in a displaced

form.” PUNTER; BYRON, op. cit., p. 39.

151 “And, as if to hide its infamy from the face of heaven, this city wears upon its brow an everlasting cloud,

which even the fresh fan of the morning fails to disperse for a single hour each day!” REYNOLDS, op. cit.,

pos. 285.

73

Obviamente, o romance retrata muitos casos de crime organizado, mas alguns se

tornam particularmente interessantes por conta de sua ambientação marcadamente gótica. Um

deles é o descrito abaixo:

Em uma pequena sala alta e bem-iluminada, cinco indivíduos encontravam-se

sentados a uma grande mesa de carvalho redonda. Um deles, que aparentava ser o

superior, era um homem idoso que possuía testa alta e cabelos brancos ralos que

caíam sobre o colarinho de seu casaco preto. Ele era baixo e um tanto corpulento;

seu rosto denotava franqueza e boa índole, mas seus pequenos olhos cinzentos e

brilhantes tinham uma expressão espreitadora e astuta que somente um observador

perspicaz perceberia. Os outros três [sic] indivíduos eram homens jovens, elegantes

e bem-vestidos e se dirigiam ao superior de maneira bem deferente.

A porta dessa sala estava cuidadosamente trancada. Em um lado da mesa havia uma

grande bandeja preta coberta por uma imensa quantidade de sinetes de todos os

tamanhos. Talvez o leitor se lembre de que, entre as ocupações e as distrações de

seus tempos de escola, uma delas era umedecer miolo de pão e amassá-lo com os

dedos até que chegasse a uma consistência capaz de tomar e reter a impressão exata

de um selo sobre uma carta. Os carimbos – aliás, os sinetes em branco – sobre a

bandeja eram desse tipo, mas cuidadosamente fabricados e bem reforçados com uma

borracha grossa.

Perto dessa bandeja, em uma grande cuia de madeira, havia obreias de todos os

tamanhos e cores, e dentro de uma caixa, também sobre a mesa, havia um monte de

lacres de todas as dimensões. Uma segunda caixa continha finas lâminas de aço

ornadas com delicados cabos de marfim, tão afiadas quanto navalhas. Uma terceira

caixa estava cheia de bastões de cera de todas as cores, importadas e nacionais. Uma

pequena retorta de vidro afixada acima de uma lamparina se encontrava perto de um

dos jovens. Uma caixa de metal contendo uma pequena almofada coberta de tinta

vermelha em um compartimento e vários carimbos iguais aos que o leitor possa ter

visto sendo utilizados em correios no outro estava aberta perto dos outros artigos

mencionados. Por último, uma pilha imensa de cartas – algumas seladas e outras

lacradas com obreias – se erguia no lado da mesa à qual o homem idoso estava

sentado.

As ocupações desses cinco indivíduos podem ser então descritas em poucas

palavras.

O velho senhor pegava as cartas uma por uma, abria-as de maneira que pudesse ler

uma parte de seu conteúdo quando não eram dobradas de modo a esconder toda a

escrita efetivamente. Ele também examinava os endereços e consultava um longo

documento de caráter oficial que se estendia sobre a mesa do seu lado direito. Ele

lançava algumas das cartas, depois de escrutinizá-las o mais cuidadosamente

possível para não romper os selos ou lacres, em uma grande cesta de vime aos seus

pés. De quando em quando, porém, passava uma carta para o jovem sentado mais

próximo a ele.

Caso as cartas fossem lacradas com cera, fazia-se uma cópia do selo com um dos

sinetes prontamente. O jovem então pegava a carta e a segurava perto do grande

fogo que ardia na grelha até que o lacre de cera amolecesse com o calor e ficasse

fácil de abri-lo sem rasgar o papel. O terceiro funcionário a lia em voz alta, enquanto

o quarto fazia anotações sobre seu conteúdo. Ela era então devolvida ao primeiro

jovem, que a lacrava novamente com o selo copiado pelo sinete e com uma cera que

combinasse exatamente com a que lacrava a carta originalmente. Quando a

cerimônia era concluída, a carta era posta na mesma cesta que continha as que não

haviam sido abertas pelas mãos do Examinador.

Caso a carta fosse lacrada com obreia, o segundo funcionário fazia a água da

pequena retorta de vidro ferver com o auxílio da lamparina, e quando o vapor saía

do tubo, o jovem segurava a carta perto do bocal de maneira que o vapor incidisse

no local idêntico ao que a obreia estava posta. A obreia então se umedecia

ligeiramente, e aí era necessário passar uma das finas lâminas de aço habilmente por

debaixo dela para abrir a carta. O terceiro jovem então lia a epístola, e o quarto fazia

74

anotações, da mesma forma. Descoberto o seu conteúdo, a carta era facilmente

lacrada de novo com uma obreia bem fina de mesma cor e tamanho da original, e

caso o trabalho fosse feito desajeitadamente, a caixa de metal mencionada

anteriormente oferecia os meios com que imprimir um carimbo vermelho sobre o

verso da carta de modo que uma parte do círculo caísse justamente sobre o local em

que a obreia foi colocada.

Esses procedimentos eram feitos em total silêncio, exceto quando se lia o conteúdo

das cartas, e então, tão acostumados esses cinco indivíduos estavam a ouvir as

revelações dos segredos mais estranhos e das comunicações mais singulares, que

raramente pareciam surpresos ou interessados, chocados ou horrorizados, por

qualquer coisa que aquelas cartas os informavam. Essa tarefa parecia puramente

mecânica: na verdade, os autômatos não poderiam ter demonstrado menos emoção

ou entusiasmo.

Oh! Que ocupação vil e desprezível, realizada por homens que saíam, de cabeças

erguidas e postura confiante, de seu emprego atroz – depois de ter violado aqueles

segredos considerados os mais sagrados e rompido os selos com os quais

comerciantes, amantes, pais, parentes e amigos haviam lacrado os seus

pensamentos!

Que ultraje baixo e diabólico perpetrado sob o comando dos Ministros da Soberana!

Leitor, essa pequena sala alta e bem-iluminada, na qual essas cenas infames

ocorreram a portas bem seguras por ferrolhos e barras, era a Câmara Escura do

Correio Geral de Saint Martin’s-le-Grand.152 (grifos no original)

152 “In a small, high, well-lighted room five individuals were seated at a large round oaken table. One of these

persons, who appeared to be the superior, was an elderly man with a high forehead, and thin

,

white hair falling

over the collar of his black coat. He was short and rather corpulent: his countenance denoted frankness and

good-nature; but his eyes, which were small, grey, and sparkling, had a lurking expression of cunning, only

perceptible to the acute observer. The other three individuals were young and gentlemanly-looking men, neatly

dressed, and very deferential in their manners towards their superior.

The door of this room was carefully bolted. At one end of the table was a large black tray covered with an

immense quantity of bread-seals of all sizes. Perhaps the reader may recall to mind that, amongst the pursuits

and amusem*nts of his school-days, he diverted himself with moistening the crumb of bread, and kneading it

with his fingers into a consistency capable of taking and retaining an accurate impression of a seal upon a

letter. The seals – or rather blank bread-stamps – now upon the tray, were of this kind, only more carefully

manufactured, and well consolidated with thick gum-water.

Close by this tray, in a large wooden bowl were wafers of all sizes and colours: and in a box also standing on

the table, were numbers of wafer-stamps of every dimension used. A second box contained thin blades of steel,

set fast in delicate ivory handles, and sharp as razors. A third box was filled with sticks of sealing-wax of all

colours, and of foreign as well as British manufacture. A small glass retort fixed over a spirit-lamp, was placed

near one of the young men. A tin-box containing a little cushion covered with printer's red ink in one

compartment and several stamps such as the reader may have seen used in post-offices, in another division, lay

open near the other articles mentioned. Lastly, an immense pile of letters – some sealed, and others wafered –

stood upon that end of the table at which the elderly gentleman was seated.

The occupations of these five individuals may be thus described in a few words.

The old gentleman took no the letters one by one, and bent them open, as it were, in such a way, that he could

read a portion of their contents when they were not folded in such a manner as effectually to conceal all the

writing. He also examined the addresses, and consulted a long paper of an official character which lay upon the

table at his right hand. Some of the letters he threw, after as careful a scrutiny as he could devote to them

without actually breaking the seals or wafers, into a large wicker basket at his feet. From time to time,

however, he passed a letter to the young man who sate nearest to him.

If the letters were closed with wax, an impression of the seal was immediately taken by means of one of the

bread stamps. The young man then took the letter and held it near the large fire which burnt in the grate until

the sealing-wax became so softened by the heat that the letter could be easily opened without tearing the paper.

The third clerk read it aloud, while the fourth took notes of its contents. It was then returned to the first young

man, who re-sealed it by means of the impression taken on the bread stamp, and with wax which precisely

matched that originally used in closing the letter. When this ceremony was performed, the letter was consigned

to the same basket which contained those that had passed unopened through the hands of the Examiner.

If the letter were fastened with a wafer, the second clerk made the water in the little glass retort boil by means

of the spirit-lamp; and when the vapour gushed forth from the tube, the young man held the letter to its mouth

in such a way that the steam played full upon the identical spot where the wafer was placed. The wafer thus

75

Outro, ainda, se passa em um distrito da cidade conhecido como Mint, que, pela sua

descrição, não poderia abrigar nada além de atividades ilegais – e esse caso inclui ninguém

menos que o terrível Resurrection Man:

Na extremidade sul de um aterro (no qual todo o refugo das casas adjacentes é

lançado e meninos de rua são constantemente recolhidos) fica a entrada de um

ajuntamento de ruas, becos e quarteirões miseráveis, formando um dos distritos mais

vis, perigosos e desmoralizados dessa metrópole gigante.

As casas são velhas, mal-iluminadas e sombrias. A parte de cima de algumas delas,

a começar pelo térreo, se projeta a pelo menos três pés acima da estrada – pois não

podemos dizer acima da calçada. A maioria das portas fica aberta e revela passagens

baixas, escuras e imundas, que só pelo aspecto já obrigam o transeunte a ir para o

meio da rua, com medo de ser subitamente arrastado para dentro daqueles covis

sinistros, que parecem próprios para se cometer crimes da pior espécie.

[…]

Fazia um frio penetrante, e o granizo caía com toda a violência; o Resurrection Man,

então, enterrou seu rosto o tanto quanto possível no colarinho de seu casaco, sem

olhar para os lados à medida que seguia seu caminho.

[...]

O Resurrection Man seguiu pela Rua Mint e de repente virou em um pequeno

quarteirão à esquerda. Lá, ele bateu em uma porta de maneira peculiar e ao mesmo

tempo assobiou uma nota estridente; e depois Holford o viu entrando na casa.

– Bom, Sr. Tidkins – disse um garoto de aproximadamente quatorze anos, que abrira

a porta para admitir o indivíduo formidável a quem evidentemente conhecia bem –

baita de uma noite fria, hein?

– Muito, meu rapaz – respondeu o Resurrection Man, dobrando seu colarinho para

baixo de modo que a luz da vela que o garoto segurava brilhasse sobre seu rosto

cadavérico. – O Bully Grand está?

Depois de responder afirmativamente, o garoto o conduziu por uma escada estreita e

dilapidada e então para uma grande sala onde vários jovens, que tinham entre doze e

dezoito anos de idade, estavam sentados a uma mesa, bebendo e fumando.

A organização dessa sociedade de patifes juvenis requer atenção detalhada.

A associação era composta por trinta e nove membros comuns e um chefe, que se

denominava Bully Grand. A fraternidade se chamava Os Quarenta Ladrões – não

became moistened in a slight degree; and it was only then necessary to pass one of the thin steel blades

skilfully beneath the wafer, in order to, open the letter. The third young man then read this epistle, and the

fourth took notes, as in the former instance. The contents being thus ascertained, the letter was easily fastened

again with a very thin wafer of the same colour and size as the original; and if the job were at all clumsily

done, the tin-box before noticed furnished the means of imprinting a red stamp upon the back of the letter, in

such a way that a portion of the circle fell precisely over the spot beneath which the wafer was placed.

These processes were accomplished in total silence, save when the contents of the letters were read; and then,

so accustomed were those five individual, to hear the revelations of the most strange secrets and singular

communications, that they seldom appeared surprised or amused - shocked or horrified, at anything which

those letters made known to them. Their task seemed purely of a mechanical kind: indeed, automatons could

not have shewn less passion or excitement.

Oh! vile – despicable occupation, – performed, too, by men who went forth, with heads erect and confident

demeanour, from their atrocious employment – after having violated those secrets which are deemed most

sacred, and broken the seals which merchants, lovers, parents, relations, and friends had placed upon their

thoughts!

Base and diabolical outrage – perpetrated by the commands of the Ministers of the Sovereign!

Reader, this small, high, well-lighted room, in which such infamous scenes took place with doors well secured

by bolts and bars, was the Black Chamber of the General Post-Office, Saint Martin'-le Grand.” REYNOLDS,

op. cit., pos. 4939-4985.

,

76

podemos determinar se era porque os fundadores contavam nesse exato número por

acaso ou para emular os célebres heróis do conto árabe, [sic]

A sociedade, entretanto, se estabelecera há mais de trinta anos da época em que

estamos escrevendo – e continua existindo nesse momento.

As regras da associação podem ser brevemente resumidas da seguinte forma: a

sociedade é composta por Quarenta Membros, incluindo o Bully Grand. Os

candidatos à admissão se tornam elegíveis aos doze anos de idade. Quando um

membro chega aos dezoito anos, ele deve se retirar da associação. Entretanto, essa

regra não se aplica ao Bully Grand, que não se qualifica para essa posição até que

chegue aos dezoito anos e tenha sido um membro por pelo menos quatro anos. Cada

candidato à associação deve ser avaliado quanto a eligibilidade e honra (a honra

necessária entre ladrões) por três membros de boa reputação na sociedade; e caso

algum membro apresente má conduta ou retenha parte de qualquer espólio que possa

adquirir, seus avalistas se responsabilizam por ele. O Bully Grand deve escolher

doze avalistas entre os membros mais antigos. Seu poder é absoluto em praticamente

todos os aspectos, e por isso, deve ter tratado com toda deferência.

Os procedimentos são os seguintes: a metrópole é dividida entre doze distritos

distinguidos em 1. Regent’s Park; 2. Pentonville; 3. Hoxton; 4. Finsbury; 5. City; 6.

Tower Hamlets; 7. Westminster; 8. Pimlico; 9. Hyde Park; 10. Grosvenor Square;

11. Lambeth; 12. Borough. Três membros são alocados para cada distrito e

substituídos diariamente por rodízio. Assim, os três que tomam o distrito de

Regent’s Park em uma segunda-feira vão para o distrito de Pentonville na terça-

feira, o distrito de Hoxton na quarta-feira, e assim por diante. Desse modo, trinta e

seis membros são empregados no serviço do distrito todos os dias. O Bully Grand e

os outros três, enquanto isso, tratam da distribuição dos itens roubados e dos

negócios diversos da fraternidade. Em cada distrito há um botequim que atende à

associação, e o rendimento do trabalho de cada dia é transferido para os

proprietários desses estabelecimentos à noite. A casa no Mint serve como local de

reuniões que acontecem a cada duas semanas, como residência do Bully Grand e

como depósito central para o qual os artigos guardados pelos botequins dos distritos

são levados.

Os regulamentos e estatutos secundários podem ser resumidos da seguinte forma:

dos três membros alocados para cada distrito, o membro mais antigo atua como

chefe e dirige o plano de procedimentos de acordo com seu critério. Caso algum

membro prove ter escondido algum espólio, seus avalistas devem pagar o valor do

mesmo, e cabe a eles punir o infrator. As reuniões gerais acontecem na sede do Mint

na primeira e na terceira quarta-feira do mês, mas caso o Bully Grand deseje

convocar uma assembleia extraordinária ou o comparecimento de quaisquer

membros em particular, ele deve avisar aos proprietários dos botequins dos distritos.

Os membros não devem roubar com violência e nem assaltar casas: eles devem

proceder por meio de truques, astúcia e artifício. Todos os litígios devem ser levados

ao Bully Grand para que ele os resolva. O espólio deve ser convertido em dinheiro,

que será dividido de maneira justa entre todos os membros a cada duas semanas, e

uma porcentagem dele é destinada ao Bully Grand como salário.

Esses são os princípios nos quais a associação dos Quarenta Ladrões se baseia. Toda

precaução é adotada pelos avalistas para impedir a admissão de membros

inapropriados e para garantir a fidelidade e a honra daqueles que pertencem à

fraternidade. Quando um membro “está em apuros”, pessoas que aparentam ser

respeitáveis se apresentam para depor a favor do rapaz, de modo que os magistrados

e os juízes ficam perplexos com a afirmação de que “foi um engano”, “o prisioneiro

é um rapaz honesto e trabalhador, vindo de uma família pobre mas respeitável do

interior”; ou de que ele “está tão convencido da inocência do rapaz que o contrataria

para trabalhar com ele se o magistrado o liberasse”. Enquanto um membro

permanece na prisão antes de ser julgado, os fundos da associação lhe oferecem a

melhor refeição permitida a entrar na cadeia, e caso seja condenado a passar um

tempo na Casa de Correção, ele pode esperar por um banquete que será servido no

Mint para celebrar o dia de sua soltura. Além disso, um membro não perde seu

direito a parte dos fundos produzidos durante seu encarceramento. Assim, todo

incentivo é adotado para prevenir que os membros “em apuros” delatem seus

77

camaradas ou façam revelações que possam comprometer a segurança da

sociedade.153 (grifos no original)

153 “At the southern extremity of this mound (on which all the offal from the adjacent houses is thrown, and

where vagabond boys are constantly collected) is the entrance into an assemblage of miserable streets, alleys,

and courts, forming one of the vilest, most dangerous, and most demoralised districts of this huge metropolis.

The houses are old, gloomy, and sombre. Some of them have the upper part, beginning with the first floor,

projecting at least three feet over the thoroughfares — for we cannot say over the pavement. Most of the doors

stand open, and reveal low, dark, and filthy passages, the mere aspect of which compels the passer-by to get

into the middle of the way, for fear of being suddenly dragged into those sinister dens, which seem fitted for

crimes of the blackest dye.

[…]

The weather was piercingly cold, and the sleet was peppering down with painful violence: the Resurrection

Man accordingly buried his face as much as possible in the collar of his coat, and neither looked to the right

nor left as he proceeded on his way.

[…]

The Resurrection Man pursued his way along Mint Street, and suddenly turned into a small court on the left-

hand side. There he knocked at a door in a peculiar manner, whistling a single sharp shrill note at the same

time; and in another moment Holford saw him enter the house.

‘Well, Mr. Tidkins,’ said a boy of about fourteen, who had opened the door to admit the formidable individual

with whom he was evidently well acquainted: ‘a preshus cold night, ain’t it!’

‘Very, my lad,’ answered the Resurrection Man, turning down his collar, so that the light of the candle which

the boy held, gleamed upon his cadaverous countenance. — ‘Is the Bully Grand at home?’

A reply in the affirmative was given; and the boy led the way, up a narrow and dilapidated staircase, to a large

room where a great number of youths, whose ages varied from twelve to eighteen, were seated at a table,

drinking and smoking.

The organisation of this society of juvenile reprobates requires a detailed notice.

The association consisted of thirty-nine co-equals and one chief who was denominated the Bully Grand. The

fraternity was called The Forty Thieves — whether in consequence of the founders having accidentally

amounted to precisely that number, or whether with the idea of emulating the celebrated heroes of the Arabian

tale, we cannot determine,

The society had, however, been established for upwards of thirty years at the time of which we are writing, —

and is in existence at this present moment.

The rules of the association may thus be briefly summed up: — The society consists of Forty Members,

including the Bully Grand. Candidates for admission are eligible at twelve years of age. When a member

reaches the age of eighteen, he must retire from the association. This rule does not, however, apply to the Bully

Grand, who is not eligible for that situation until he has actually reached the age of eighteen, and has been a

member for at least four years. Each candidate for membership must be guaranteed as to eligibility and honour

(that honour which is necessary amongst thieves) by three members of good standing in the society; and should

any member misconduct

,

himself, or withhold a portion of any booty which he may acquire, his guarantees are

responsible for him. The Bully Grand must find twelve guarantees amongst the oldest members. His power is

in most respects absolute; and the greatest deference is paid to him.

The modes of proceeding are as follow — The metropolis is divided Into twelve districts distinguished thus: —

1. The Regent's Park; 2. Pentonville; 3. Hoxton; 4. Finsbury; 5. City; 6. Tower Hamlets; 7. Westminster; 8.

Pimlico; 9. Hyde Park; 10. Grosvenor Square; 11. Lambeth; 12. The Borough. Three members are allotted to

each district, and are changed in due rotation every day. Thus the three who take the Regent's Park district on a

Monday, pass to the Pentonville district on Tuesday, the Hoxton district on Wednesday, and so on. Thus thirty-

six members are every day employed in the district-service. The Bully Grand and the three others in the

meantime attend to the disposal of the stolen property, and to the various business of the fraternity. In every

district there is a public-house, or boozing-ken, in the interest of the association; and to the landlords of these

flash cribs is the produce of each day's work consigned in the evening. The house in the Mint is merely a place

of meeting once a fortnight, a residence for the Bully Grand, and the central depôt to which articles are

conveyed from the care of the district boozing-kens.

The minor regulations and bye-laws may be thus summed up: — Of the three members allotted to each district,

the oldest member acts as the chief, and guides the plan of proceedings according to his discretion. Should any

member be proved to have secreted booty, his guarantees must pay the value of it; and with them rests the

punishment of the defaulter. General meetings take place at the headquarters in the Mint on the first and third

Wednesday in every month; but if the Bully Grand wishes to call an extraordinary assembly, or to summon any

particular member or members to his presence, he must leave notices to that effect with the landlords of the

district houses-of-call. The members are to effect no robberies by violence, nor to break into houses: their

78

No que se refere à estética gótica, vê-se que os dois casos apresentam pontos em

comum: ambos os grupos se reúnem de maneira cerimoniosa em lugares recônditos e bem

guardados; ambos possuem “chefes” que ditam as regras; e ambos assumem denominações

sombrias – a “Câmara Escura” e os “Quarenta Ladrões” – que denotam mistério e perigo.

Tomadas em conjunto, essas características correspondem a um modelo típico de sociedades

secretas que executam suas próprias leis em detrimento da população e das normas sociais.

Nesse contexto, o crime organizado é a principal causa do caos que se instaura na cidade – é o

elemento que equivale ao mal “sobrenatural” que precisa ser expurgado nas histórias góticas

tradicionais.

O primeiro caso mostra as atividades clandestinas que se realizam dentro das

instituições públicas, denunciando a corrupção e a decadência de uma esfera social

supostamente alicerçada nos valores da integridade e da boa política. O ato de interceptar as

correspondências dos cidadãos representa uma invasão arrebatadora de suas vidas privadas,

revelando segredos íntimos, relacionamentos proibidos e conexões misteriosas; a carta

violada, nesse sentido, simboliza o crime cometido contra a individualidade. Além disso,

essas correspondências não se restringem a “diálogos sentimentais”, mas também incluem

cartas oficiais trocadas entre o governo britânico e de outras nações; a quebra do sigilo

constitucional, por sua vez, constitui um crime contra o Estado. No gótico urbano, portanto, o

crime das instituições públicas está relacionado, por um lado, à exposição do funcionamento

escuso de um sistema opressor, e por outro, à repressão que o indivíduo sofre nas mãos da

sociedade como um todo.

proceedings must be effected by sleight of hand, cunning, and artifice. All disputes must be referred to the

Bully Grand for settlement. The booty must be converted into money, and the cash divided fairly between all

the members every fortnight, a certain percentage being allotted by way of salary to the Bully Grand.

Such are the principles upon which the association of the Forty Thieves is based. Every precaution is adopted,

by means of the guarantees, to prevent the admission of unsuitable members, and to ensure the fidelity and

honour of those who belong to the fraternity. When a member ‘gets into trouble,’ persons of apparent

respectability come forward to give the lad a character; so that magistrate. or judges are quite bewildered by

the assurance, that ‘it must be a mistake:’ ‘that the prisoner is an honest hard-working boy, belonging to poor

but respectable parents in the country;’ or ‘that so convinced is the witness of the lad’s innocence, that he will

instantly take him into his service if the magistrate will discharge him.’ While a member remains in prison

previous to trial, the funds of the association provide him with the best food allowed to enter the gaol; and, if

he be condemned to a term of incarceration in the House of Correction, he looks forward to the banquet that

will be given in the Mint to celebrate the day of his release. Moreover, a member does not lose his right to a

share of the funds realised during his imprisonment. Thus every inducement is adopted to prevent members

who ‘get into trouble’ from peaching against their comrades, or making any revelations calculated to

compromise the safety of the society.” REYNOLDS, G. W. M. The Mysteries of London, Vol. 2. Disponível

em: . Acesso em: 07 de fevereiro de 2015.

79

O outro caso, por sua vez, trata do crime organizado seguindo suas descrições

convencionais: ele se origina nas classes sociais mais baixas, fixando sua sede em um

ambiente insalubre e perigoso e congregando homens desonestos e repulsivos. Note-se,

entretanto, que a fraternidade funciona de modo bastante regrado, desde a seleção de seus

membros até o estabelecimento de um código de conduta próprio da classe dos ladrões; cada

um deles exerce um papel importante no esquema, deixando de agir por seus próprios

métodos e motivos para trabalharem em prol da “missão social” da organização. Fazendo uma

comparação entre esses dois casos, percebe-se que eles se “contaminam” mutuamente, de

forma que a instituição pública se transforma em uma sociedade secreta criminosa e o crime

organizado assume uma estrutura similar à de uma instituição social renomada. Tal como

Williams argumenta,

[a] inocência e o vício estão na cidade [...] em suas relações concretas [...]. A

questão é o estabelecimento de conexões novas, no contexto de toda a ordem urbana

e do sistema humano que a cidade concentra e encarna. Impor à consciência essas

conexões ocultas é, portanto, uma nova maneira de ver a ordem humana e social

como um todo.154

As estranhas conexões que se estabelecem entre o mundo “respeitável” e o submundo

do crime, porém, tornam as distinções entre eles tão tênues que a sociedade londrina se revela

essencialmente corrupta e degenerada. O horror do crime, portanto, representa um perigo mais

amplo e real, pois deixa o cidadão comum com a sensação de ser constantemente encurralado

pelas ameaças que a cidade oferece e de estar aprisionado em uma sociedade que ao mesmo

tempo o integra e o explora.

2.3.3 A desumanidade: espetáculos de morbidez e horror

Em seu sentido mais amplo, desumanidade corresponde à falta de humanidade, isto

é, a sensibilidade ou o sentimento de compaixão que se espera existir de um ser humano para

com outro. Em geral, é expressa por meio de práticas e

,

mais ou menos na mesma época, tais como o romance de Newgate, o

romance sensacionalista e o romance gótico. A convergência desses aspectos ajudou a formar

o gótico urbano, um estilo próprio das penny bloods que difere do gótico tradicional por se

situar na cidade e no tempo presente dos leitores vitorianos. Apresenta-se um pouco das

características desses outros subgêneros por meio de artigos produzidos por Lyn Pykett (“The

Newgate Novel and Sensation Fiction, 1830-1868”, 2003) e F. S. Schwarzbach (“Newgate

Novel to Detective Fiction”, 2002) sobre o romance de Newgate e o romance sensacionalista,

e por Jarlath Killeen (“Victorian Gothic Pulp Fiction”, 2012), Alexandra Warwick (“Victorian

Gothic”, 2007) e David Punter e Glennis Byron (The Gothic, 2004) sobre a transição do

gótico tradicional para o gótico urbano.

Finalmente, abordam-se as penny bloods como uma das primeiras formas de ficção

de massa, especialmente por se tratarem de um tipo de literatura altamente comercializável,

com formato limitado e barato e público leitor específico, e por terem provocado muitas

críticas por parte dos ideólogos culturais da burguesia inglesa. De modo a embasar essa

abordagem, conta-se com a contribuição de David Glover e Scott McCracken (The

Cambridge Companion to Popular Fiction, 2012), quando argumentam que os novos métodos

de publicação desenvolvidos no século XIX possibilitaram a criação da ficção de massa; a do

romancista vitoriano Wilkie Collins (“The Unknown Public”, 1858), que descreve o público

leitor formado pela classe trabalhadora como uma multidão vasta e indefinida de

consumidores desse tipo de ficção; e de estudiosos como Antony Easthope (Literary into

cultural studies, 1991), Bernard Mouralis (As contraliteraturas, 1982) e Umberto Eco

(Apocalípticos e Integrados, 2011), que abordam a distinção entre cultura dominante e cultura

de massa, debatida até os dias atuais.

O segundo capítulo se concentra na análise de The Mysteries of London, uma das

penny bloods selecionadas para compor o corpus ficcional da pesquisa. Esse romance foi

14

escolhido não só por representar o subgênero quanto à forma e ao tema de maneira conspícua,

mas também por ter sido bastante popular no período vitoriano e por ser uma das poucas

penny bloods acessíveis atualmente.1 No entanto, dadas sua narração demasiadamente extensa

e sua grande abrangência de temas diversos, foi necessário fazer um recorte da obra, para que

somente os aspectos relacionados ao gótico urbano sejam explorados na análise; ainda assim,

o capítulo se estende por muitas páginas, de modo a cobrir todos os pontos relevantes

levantados sobre essa penny blood que fazem dela um representante particularmente claro do

subgênero. Dentre eles, destacam-se, por exemplo, a descrição de Londres como uma cidade

sombria, labiríntica, onde se guardam mistérios e mazelas de todos os tipos, sendo, por isso,

um lugar bastante propício para o crime e para a imoralidade; a figura do vilão como um ser

essencialmente vil, perverso e horroroso, representada principalmente por Anthony Tidkins (o

“Resurrection Man”) – e, embora em um grau bem menos ameaçador, George Montague

Greenwood –, em contraposição à figura do herói digno, virtuoso e belo, personificada por

Richard Markham, o protagonista da história, bem como a interação de inimizade e de

perseguição que se forma entre esses dois personagens; as cenas chocantes de violência,

terror, decadência e morte que permeiam a narrativa, passadas sobretudo nas áreas mais

pobres da cidade; a corrupção e o crime como males que afligem toda a sociedade, desde as

classes mais baixas até as mais altas, representando, assim, o horror maior que emana da

cidade.

Outro elemento importante a ser contemplado em The Mysteries of London é o

melodrama, bastante presente nesse romance. Peter Brooks (The Melodramatic Imagination:

Balzac, Henry James, Melodrama, and the Mode of Excess, 1996) defende que o melodrama é

um modo de expressão predominante no romance gótico. Em The Mysteries of London, pode-

se identificá-lo especialmente nos conflitos morais entre o bem e o mal que se estabelecem no

enredo, no apelo para emoções exageradas e na necessidade de revelar o que se encontra

escondido por detrás da realidade.2 Desse modo, o trabalho de Brooks torna-se indispensável

1 Muitas penny bloods são encontradas somente em coleções particulares ou em bibliotecas – a Barry Ono

Collection of Penny Dreadfuls, mantida na British Library, é considerada um dos maiores acervos de penny

bloods e penny dreadfuls existentes (para mais detalhes, ver

). No entanto, há uma versão online

de The Mysteries of London no site Victorian London

00-chapters.htm>, uma edição impressa de seu primeiro volume lançada em 2013 pela editora Valancourt

Books (o lançamento do segundo volume pela mesma editora está previsto para 2015).

2 Brooks associa essa necessidade de revelação com imagens de profundeza conjuradas no romance gótico: “The

content of the depths is one version of the ‘moral occult’, the realm of inner imperatives and demons, and the

Gothic novel dramatizes again and again the importance of bringing this occult into man’s waking, social

existence, of saying its meaning and acting out its force.” Ver: BROOKS, Peter. The Melodramatic

15

ao desenvolvimento desse capítulo, bem como artigos específicos sobre esse romance, tais

como os de Richard C. Maxwell (“G. M. Reynolds, Dickens, and the Mysteries of London”,

1977) e Anne Humpherys (“Generic Strands and Urban Twists: The Victorian Mysteries

Novel”, 1991, e “An Introduction to G.W.M. Reynolds’s ‘Encyclopedia of Tales’”, 2008), as

considerações de Raymond Williams (O campo e a cidade, 2011) sobre os significados que a

cidade assume ao longo do tempo e as reflexões de Michel Foucault (Vigiar e Punir: história

da violência nas prisões, 1977) sobre o espetáculo da violência.

O terceiro capítulo, por sua vez, será dedicado à análise de The String of Pearls: A

Romance, outra penny blood que fez muito sucesso entre os leitores vitorianos.3 Essa obra

constitui o primeiro registro escrito da história de Sweeney Todd, um barbeiro que

assassinava seus clientes e oferecia seus corpos à Sra. Lovett, uma pâtissière, para que ela

recheasse suas tortas de carne. Ambos os personagens pertencem a uma lenda urbana

originária da França sobre pessoas que desapareceram misteriosamente em Paris e que, no

final das contas, teriam sido canibalizadas.

Nesse romance, as características do gótico urbano já mencionadas anteriormente

apresentam nuances ligeiramente diferentes: Londres é uma cidade agitada por uma atividade

comercial intensa e por um fluxo considerável de pessoas desconhecidas, criando, assim, uma

atmosfera bastante claustrofóbica; o barbeiro, vilão e protagonista da narrativa, assume uma

ferocidade quase animalesca, a qual ele direciona não a uma vítima somente, mas a uma série

delas; o submundo do crime se encontra, em parte, literalmente embaixo da terra, mais

precisamente nas passagens subterrâneas que ligam a barbearia de Sweeney Todd à loja da

Sra. Lovett; e o horror é expresso principalmente pelo canibalismo, que, mais do que um

crime, é um tabu. Apesar de o ato de comer carne humana ser considerado atroz e abjeto,

nesse romance ele é tratado com uma boa dose de humor, um ponto que certamente merece

ser explorado. O trabalho de Robert L. Mack (The Wonderful and Surprising History of

Sweeney Todd: The Life and Times of an Urban Legend, 2007), que faz um estudo abrangente

do personagem Sweeney Todd, bem como os de Billie Melman (“Horror and Pleasure: Visual

Histories, Sensationalism and Modernity in Britain in the Long Nineteenth Century”, 2011) e

de Nöel Carroll (“Horror

,

atitudes adotadas por um indivíduo ou

um grupo que afetam diretamente outro indivíduo ou grupo e lhes causam humilhação e

sofrimento. Mais do que mera indiferença ou crueldade para com um semelhante, ela significa

um desrespeito absoluto à vida humana, cujo efeito mais devastador inclui violar e

descaracterizar a identidade do outro.

154 WILLIAMS, op. cit., pp. 252-253.

80

Muitos dos “mistérios de Londres” desvendados ao longo do romance representam a

desumanidade como consequência do materialismo da cidade moderna e também do

individualismo da sociedade capitalista, que prejudicam a capacidade das pessoas de se verem

umas às outras e ensejam comportamentos abusivos; além disso, ela também se desenvolve a

partir dos contrastes que compõem o que Stephen T. Asma chama de “civilização

monstruosa”, pois “[u]m ambiente no qual faltam necessidades básicas (emprego, comida,

abrigo, etc.) pode produzir uma população desumanizada, mas um ambiente com riqueza e

prosperidade em excesso também pode desumanizar”.155 No entanto, é sobretudo nos recantos

mais miseráveis da metrópole, onde as camadas sociais marginalizadas se concentram e onde

o crime e a imoralidade adquirem dimensões mais graves, que a desumanidade se torna mais

evidente e repulsiva no romance.

Um desses casos de desumanidade se passa em um bairro chamado Smithfield, onde

moram Bill e Polly Bolter e seu casal de filhos, Harry e Fanny, de sete e cinco anos,

respectivamente. Apesar da convivência, eles estão longe de ser uma família feliz e amorosa:

os pais não têm o mínimo de carinho e cuidado pelas crianças, e eles mesmos brigam com

frequência; Bill, que é um ladrão, havia sido preso, e Polly, que não tem nenhuma ocupação,

obriga seus filhos a pedirem esmola nas ruas. Certa noite, ao chegarem a casa, Harry e Fanny

se surpreendem ao verem o pai de volta e correm para abraçá-lo, o que não o comove, mas o

irrita. Polly, por sua vez, fica irada com o dinheiro parco que eles haviam conseguido no dia e

os castiga com tapas, chutes e xingamentos, acusando-os de não terem se esforçado o

suficiente para despertar a caridade das pessoas; Harry, que gosta muito de sua irmã, sempre

tenta defendê-la da raiva e das agressões da mãe, mas tudo em vão. Cansados, machucados e

famintos, Harry e Fanny se preparam para dormir, segurando o choro para não irritarem seus

pais e não apanharem mais. Assim que eles adormecem, entretanto, Polly diz ao marido que

tem um plano para fazer com que as crianças consigam mais dinheiro:

– Vou lhe dizer uma coisa – disse a mulher, sussurrando para seu marido em

um tom misterioso – Pensei em um plano excelente pra fazer a Fanny ser útil pra

gente.

– Bom, Polly, e o que é? – perguntou o homem.

– Bom – continuou a mulher, seu rosto expressando malícia e uma crueldade

demoníaca –, eu estava pensando que Harry vai poder te ajudar no seu ramo em

breve. Ele pode ser muito útil na hora de empurrar uma janela, ou de entrar em

155 “An environment lacking in basic needs (employment, food, shelter, etc.) can produce a dehumanized

populace, but an environment with too much wealth and prosperity can also dehumanize.” ASMA, Stephen T.

On Monsters: An Unnatural History of Our Worst Fears. Edição Kindle. New York: Oxford University Press,

2009, pos. 4277.

81

algum lugar sem ser percebido e se esconder o dia inteiro em um porão para abrir a

porta à noite – ou para uma porção de coisas.

– Ele vai ser, no tempo certo – disse Bill, acenando com aprovação.

– Bem, mas tem a Fanny. O que ela pode fazer de bom pra gente nos

próximos anos? Ela não vai pedir esmola, eu sei que não vai. É tudo mentira daquele

garoto quando ele diz que ela pede: ele gosta muito dela e só diz isso para proteger

ela. Então eu tive a grande ideia de fazer alguma coisa que vai obrigar ela a pedir

esmola, sim, e ficar satisfeita por pedir, e pedir demais, mesmo contra a vontade

dela.

– Que diabos você quer dizer?

– Ué, fazer uma coisa com ela, que vai botar ela totalmente nas nossas mãos,

e ao mesmo tempo deixar ela tão interessante que as pessoas vão ter que dar

dinheiro a ela. Eu aposto que com o meu plano ela tiraria cinco libras por dia; e que

bênção isso seria.

– Mas como? – disse Bill com impaciência.

– E então – continuou a mulher, sem prestar atenção à pergunta –, ela não ia

precisar do Henry [sic] junto com ela; e aí você pode começar a usar ele de alguma

forma. Tudo que a gente teria que fazer era levar a Fanny para uma boa avenida todo

dia, deixar ela lá de manhã e buscar ela de novo à noite; e aí eu garanto que ela ia

conseguir cerveja pra gente... Ah, e brandy também.

– Aonde você quer chegar? – perguntou o homem.

– Não adivinha?

– Não, droga!

– Não vê o esquema?

– E eu lá sou burro? Claro que eu vejo, mas como é que a gente vai fazer

isso? Você não tem como ensinar Fanny a ser esperta assim, tem?

– Eu não quero ensinar nada a ela. Minha proposta é forçar ela a fazer isso.

– Como assim? – perguntou o homem.

– Deixando ela cega – respondeu a mulher.

Seu marido era um ladrão, sim, e um assassino; mas ele se sobressaltou

quando ouviu a proposta.

– Não tem nada mais digno de pena do que uma criança cega – acrescentou a

mulher friamente. – Isso é um fato – continuou ela, depois de uma pausa, vendo que

seu marido não havia respondido. – Veja Kate Betts, que conseguiu um bom

dinheiro viajando pelo país com duas meninas cegas; e foi ela mesma que cegou

elas. Ela já me disse várias vezes como fez isso; e isso colocou a ideia na minha

cabeça.

– E como ela fez isso? – perguntou o homem, acendendo seu cachimbo sem

olhar para a mulher; pois embora as palavras dela o tivessem impressionado, ele

ainda lutava contra um pouco de sentimento de pai, que permanecia em seu coração

contra sua vontade.

– Ela cobriu os olhos delas com duas conchas, deixando as pálpebras bem

abertas, e dentro de cada concha tinha um besouro grande e escuro. Aí ela fixou as

conchas com uma faixa bem apertada em volta da cabeça para as pálpebras ficarem

abertas. Depois de alguns dias os olhos já não viam nada e as pupilas ficaram

esbranquiçadas e mortas.

– Você está falando sério? – perguntou o homem.

– Muito – respondeu ela descaradamente –, por que não?

– Por que não, né? – repetiu Bill, que aprovava esse esquema horrível, mas se

estremeceu com a crueldade dele, mesmo sendo tão vil.

– Ah, por que não? – continuou a mulher: – A gente tem que usar os filhos de

alguma forma. Então, se você não se importa, eu vou despachar o Harry sozinho

amanhã de manhã e deixar Fanny em casa. Assim que ele estiver fora do caminho,

vou tentar o plano de Kate Betts.156 (grifos no original)

156 “‘I tell you what,” said the woman, whispering in a mysterious tone to her husband, ‘I have thought of an

excellent plan to make Fanny useful.’

‘Well, Polly, and what’s that?’ demanded the man.

82

Entretanto, antes que possa executar seu plano, Polly é severamente punida por uma

ironia do destino. Na mesma noite, Bill vai a um pub e passa a madrugada inteira bebendo na

companhia de seus parceiros de crime. Ao chegar a casa pela manhã, porém, encontra Polly

enfurecida com o fato de ele ter ficado fora por tanto tempo, e os dois têm uma briga violenta,

com troca de insultos e agressões. Harry e Fanny assistem a tudo, chorando de medo, mas

seus pais continuam, como se os filhos não estivessem ali. Bill e Polly finalmente se apartam,

mas ela, não conseguindo conter sua raiva, começa a bater nas crianças. Dessa vez, Bill

‘Why,’ resumed his wife, her countenance wearing an expression of demoniac

,

cruelty and cunning, ‘I’ve been

thinking that Harry will soon be of use to you in your line. He’ll be so handy to shove through a window, or to

sneak down a area and hide himself all day in a cellar to open the door at night, – or a thousand things.’

‘In course he will,’ said Bill, with an approving nod.

‘Well, but then there’s Fanny. What good can she do for us for years and years to come? She won’t beg – I

know she won’t. It’s all that boy’s lies when he says she does: he is very fond of her and only tells us that to

screen her. Now I’ve a very great mind to do someot that will make her beg – aye, and be glad to beg – and beg

too in spite of herself.’

‘What the hell do you mean?’

‘Why, doing that to her which will put her entirely at our mercy, and at the same time render her an object of

such interest that the people must give her money. I’d wager that with my plan she’d get her five bob a day;

and what a blessin’ that would be.’

‘But how?’ said Bill impatiently.

‘And then,’ continued the woman, without heeding this question, ‘she wouldn’t want Henry [sic] with her; and

you might begin to make him useful some how or another. All we should have to do would be to take Fanny

every day to some good thoroughfare, put her down there of a mornin’, and go and fetch her agen at night; and

I’ll warrant she’d keep us in beer – aye, and in brandy too.’

‘What the devil are you driving at?’ demanded the man.

‘Can’t you guess?’

‘No – blow me if I can.’

‘Do you fancy the scheme?’

‘Am I a fool? Why, of course I do: but how the deuce is all this to be done? You never could learn Fanny to be

so fly as that?’

‘I don’t want to learn her anything at all. What I propose is to force it on her.’

‘And how is that?’ asked the man.

‘By putting her eyes out,’ returned the woman.

Her husband was a robber – yes, and a murderer: but he started when this proposal met his ear.

‘There’s nothin’ like a blind child to excite compassion,’ added the woman coolly. ‘I know it for a fact,’ she

continued, after a pause, seeing that her husband did not answer her. ‘There’s old Kate Betts, who got all her

money by travelling about the country with two blind girls; and she made ’em blind herself too – she’s often

told me how she did it; and that has put the idea into my head.’

‘And how did she do it?’ asked the man, lighting his pipe, but not glancing towards his wife; for although her

words had made a deep impression upon him, he was yet struggling with the remnant of a parental feeling,

which remained in his heart in spite of himself.

‘She covered the eyes over with co*ckle shells, the eye-lids, recollect, being wide open; and in each shell there

was a large black beetle. A bandage tied tight round the head, kept the shells in their place; and the shells kept

the eyelids open. In a few days the eyes got quite blind, and the pupils had a dull white appearance.’

‘And you’re serious, are you?’ demanded the man.

‘Quite,’ returned the woman, boldly: ‘why not?’

‘Why not indeed?’ echoed Bill, who approved of the horrible scheme, but shuddered at the cruelty of it, villain

as he was.

‘Ah! why not?’ pursued the female: ‘one must make one’s children useful somehow or another. So, if you

don’t mind, – I’ll send Harry out alone tomorrow morning and keep Fanny at home. The moment the boy’s out

of the way, I’ll try my hand at Kate Betts’s plan.’” REYNOLDS, op. cit., pos. 2962-3004.

83

decide intervir – não que se importe com elas, mas porque odeia sua mulher no momento e

quer frustrá-la a todo custo – e atinge sua nuca com força. Polly cede ao impacto e cai, mas

antes que ela alcance o chão, seu olho esquerdo bate na quina de uma mesa e é esmagado. Bill

tenta socorrê-la, mas ela não resiste ao ferimento e morre. O rosto dela o encara, com uma das

órbitas dos olhos vazia, cheio de sangue e contorcido de ódio, e Bill, paralisado, parece não

perceber que havia assassinado sua mulher até ouvir as vozes das crianças perguntando o que

havia acontecido com a mãe. Ele corre até a porta, mas o apelo desesperado de Harry para que

o pai não os abandonasse o detém; ele hesita por um minuto, diz para as crianças que vai

buscar um médico para Polly e finalmente foge.

Figura 5. Cena da morte de Polly Bolter ilustrada por George Stiff em The Mysteries of London.

Um outro caso ocorre em Spitalfields, bairro onde o Resurrection Man reside. Um

dia, perdido por lá, Richard Markham procura seu caminho de volta quando percebe que há

alguém o seguindo. Depois de avançar alguns passos, porém, algo pesado golpeia sua cabeça

por trás e ele cai contra a porta de uma casa. Ao se recuperar do torpor causado pelo golpe, ele

vê que está em um cômodo estranho, e se aterroriza com a seguinte cena:

Estendido sobre uma veneziana apoiada por três cadeiras, havia um cadáver – nu, e

daquela cor azulada e lívida que denota o início da decomposição!

Próximo a esse objeto repulsivo havia uma bacia cheia d’água; e logo acima dela,

presos no teto, dois ganchos grandes, dos quais pendiam duas cordas grossas.

84

Em um canto do cômodo, viam-se varas de ferro longas e flexíveis, pás, picaretas,

alavancas de madeira, rolos de corda grossa, espátulas, serrotes, martelos, cinzéis,

chaves-mestra, etc.

E qual foi a surpresa de Richard quando, desviando o olhar dos objetos descritos

acima para o facínora que o havia arrastado para aquele antro de horrores, se

deparou com a cara sombria e horrorosa do Resurrection Man.157

Richard, calculando que o Resurrection Man estava certo de que o golpe aplicado

nele havia sido fatal, decide fingir que está de fato morto para salvar a própria vida. Enquanto

isso, ele ouve o ladrão de cadáveres falando com dois de seus comparsas que haviam acabado

de chegar sobre um trabalho de última hora, no qual eles teriam que retirar um corpo de um

túmulo a pedido de um determinado cirurgião. De repente, um deles – Tom the Cracksman –

diz, ao ser indagado pelo outro – Buffer – sobre o que ele acha de roubar cadáveres:

– É bom pra variar, e principalmente quando a gente quer um defunto pra um

dia certo e não sabe em qual cemitério catar um; aí a gente teve a ideia de pegar eles

vivos na rua.

– Mas essa ideia foi minha – exclamou Buffer. – Você não lembra quando a

gente quis um defunto pro mesmo cirurgião que chamou a gente agora? A gente

esperou quase duas horas na porta daquela casa, e daí a gente pegou um sujeito que

estava andando tranquilo, olhando pra lua?

– E então eu pensei em segurar ele de cabeça para baixo dentro de uma bacia

d’água – acrescentou o Cracksman –, até ele se afogar. Desse jeito não dá pra

desconfiar de nada: nada de feridas na pele, nem de veneno no estômago; e nem fica

muita água dentro dele, porque o pobre diabo não engole de cabeça para baixo.

– Ah, essa foi uma boa ideia – disse Buffer –, e agora a gente fez disso um

sistema regular. Bacia d’água prontinha no chão; ganchos e cordas pra segurar os

pés dos homens no teto; e então, olha só, eles ficam ali pendurados, de cabeça para

baixo, que nem as carcaças nos açougues, quando eles estão sem roupa.158

157 “Stretched upon a shutter, which three chairs supported, was a corpse – naked, and of that blueish or livid

colour which denotes the beginning of decomposition!

Near this loathsome object was a large tub full of water; and to that part of the ceiling immediately above it

were affixed two large hooks, to each of which hung thick cords.

In one corner of the room were long flexible iron rods, spades, pickaxes, wooden levers, coils of thick rope,

trowels, saws, hammers, huge chisels, skeleton keys, &c.

But how great was Richard’s astonishment when, glancing from the objects just described towards the ruffian

who had hurled him into that den of horrors, his eyes were struck by the sombre and revolting countenance of

the Resurrection Man.” REYNOLDS, op. cit., pos. 7848-7853.

158

,

“‘Anythink by vay of a change; partikler as when we want a stiff’un by a certain day, and don’t know in

which churchyard to dive for one, we hit upon the plan of catching ’em alive in the street.’

‘It was my idea, though,’ exclaimed the Buffer. ‘Don’t you remember when we wanted a stiff’un for the wery

same Sawbones which we’ve got to meet presently, we waited for near two hours at this house-door, and at last

we caught bold of a feller that was walking so comfortable along, looking up at the moon?’

‘And then I thought of holding him with his head downwards in a tub of water,’ added the Cracksman, ‘till he

was drownded. That way don’t tell no tales; – no wound on the skin – no pison [sic] in the stomach; and there

ain’t too much water inside neither, cos the poor devils don’t swaller with their heads downwards.’

‘Ah! it was a good idea,’ said the Buffer; ‘and now we’ve reduced it to a reg’lar system. Tub of water all ready

on the floor – hooks and cords to hold the chaps’ feet up to the ceiling; and then, my eye! there they hangs,

head downwards, jest for all the world like the carcasses in the butchers’ shops, if they hadn’t got their clothes

on.’” REYNOLDS, op. cit., pos. 7894-7904.

85

Ao sair, junto com os outros dois criminosos, o Resurrection Man deixa Richard aos

cuidados de sua mãe – uma velha decrépita e tão maléfica quanto o filho –, instruindo-a a

recolher dinheiro e quaisquer outras coisas valiosas de posse dele e depois deixá-lo lá para ser

descartado no dia seguinte. Assim que ela entra no cômodo onde ele se encontrava, porém, é

surpreendida por Richard, que a agarra pelo pulso e exige que ela o leve ao lugar onde as

roupas do cadáver haviam sido guardadas – sua ideia é procurar algo que o identifique para

que ele possa dar a triste notícia para a família do homem assassinado. Ela, no entanto, faz

com que ele pise em um alçapão e Richard cai dentro de uma escavação subterrânea. Para a

sorte do rapaz, o alçapão, que a princípio servia para despachar as vítimas do Resurrection

Man, acaba possibilitando sua fuga; ele, assim, consegue sair ileso do esconderijo do ladrão

de cadáveres.

Finalmente, o terceiro caso se passa em St. Giles, uma área bastante pobre conhecida

como Holy Land. Após um encontro inesperado com o Resurrection Man, Richard faz uma

busca nas casas precárias do bairro, acompanhado de um policial, na tentativa de capturar o

vilão e finalmente colocá-lo na cadeia, mas sem sucesso. Ao passarem por uma dessas casas,

entretanto, eles ouvem um grito de agonia; alguns momentos depois, um garoto corcunda

surge das escadas da casa pedindo socorro. Richard e o policial se apressam em atendê-lo,

subindo até o quarto de onde o grito veio, e então veem uma cena bastante peculiar:

O quarto ficava no topo da casa e se assemelhava a um sótão, não havendo teto para

esconder as vigas e os vergalhões enormes que suportavam o telhado anguloso.

Uma figura estofada pendia de uma das vigas horizontais, lembrando um ser

humano em tamanho real. Vestia um traje masculino completo e possuía uma

máscara branca que lhe dava a aparência real e medonha de um cadáver.

Encontrava-se suspensa por um tipo de corda grossa ou cabresto amarrado sob a

orelha esquerda, que fazia com que a cabeça se inclinasse um pouco para o ombro

direito, e balançava levemente para a frente e para trás, como se tivesse sido tocada

recentemente. Os braços estavam atados por trás, e as mãos, que haviam sido feitas

com luvas infantis encardidas de modo a parecerem mais ou menos reais, se

contorciam como em uma última convulsão. Em suma, a figura era uma reprodução

exata de um homem enforcado.

Markham deu um passo para trás quando seus olhos se recaíram sobre esse objeto

sinistro pela primeira vez, mas uma segunda olhada o convenceu de que aquilo era

apenas um boneco.

[...]

A figura já descrita foi suspensa de tal maneira que sua extremidade inferior ficasse

a um pé do chão, mas estava escondida quase até o joelho por algo que parecia ser

um pequeno cadafalso ou uma grande caixa preta, tendo caído até essa altura em um

alçapão feito na plataforma desse pequeno palanque.

Depois de ver esse estranho espetáculo – que era a representação perfeita de uma

execução em todos os aspectos –, os olhos de Markham se voltaram para o resto do

sótão.

As paredes – feitas de tijolos grosseiros e manchadas de cal – eram cobertas por

quadros malfeitos de cores vivas e molduras simples de madeira escura. Esses

quadros eram daqueles vendidos em bairros pobres por alguns pence cada e que

86

retratavam cenas das vidas de salteadores, assassinos e outros criminosos famosos

que tiveram seu fim no cadafalso. [...]

Mas como se essas recordações pictóricas de crimes e mortes violentas não fossem

suficientes para agradar ao excelente gosto daqueles que ocupavam o apartamento,

alguém, cuja imaginação sem dúvida se deleitava com o horror, rabiscou na parede

alguns desenhos igualmente horripilantes. Forcas de todas as formas e criminosos

em todos os diferentes estágios de seus últimos minutos de vida figuravam neles. A

ingenuidade do desenhista sugeria até mesmo melhorias nos modos comuns de

execução delineando quedas, cabrestos e métodos para atar com base em novos

princípios.

Tudo naquele sótão espaçoso remetia ao cadafalso!159

O quarto em questão pertence a um sujeito chamado Smithers, o executor público da

cidade. Por meio desses aparatos e desenhos sinistros, ele procura aprimorar suas técnicas de

execução e iniciar o filho – o garoto corcunda que atende pelo apelido Gibbet – em seu ofício,

pois acredita que ele não conseguirá nenhum outro emprego na vida por causa de sua

deformidade. A confusão começa quando a sobrinha de Smithers, Katherine, intervém a favor

do primo, que se recusa a aprender qualquer coisa relacionada à profissão de seu pai; os dois

acabam sendo violentamente castigados por ele, que não admite ser contrariado. Como se não

bastassem as agressões quase diárias, Kate e Gibbet ainda são estigmatizados por terem

parentesco com o executor público, que é temido e odiado pela população londrina em geral.

159 “The room was situated at the top of the house and bore the appearance of a loft, there being no ceiling to

conceal the massive beams and spars which supported the angular roof.

From one of the horizontal beams hung a stuffed figure, resembling a human being, and as large as life. It was

dressed in a complete suit of male attire; and a white mask gave it the real but ghastly, appearance of a dead

body. It was suspended by a thick cord, or halter, the knot of which being fastened beneath the left ear, made

the head incline somewhat over the right shoulder; and it was waving gently backwards and forwards, as if it

had been recently disturbed. The arms were pinioned behind; and the hands, which were made more or less

life-like by means of dingy white kid gloves, were curled up as it were in a last convulsion. In a word, it

presented the exact appearance of a man hanging.

Markham started back when his eyes first fell on this sinister object; but a second glance convinced bun that

the figure was only a puppet.

[…]

The figure already described was suspended in such a way that its lower extremity was about a foot from the

ground; but it was concealed nearly up to the knees by a small scaffold, or large black box, It [sic] having been

suffered to fall that much through a trap-door made like a drop in the platform of that diminutive stage.

From this strange spectacle, — which, in all respects, was a perfect representation of an execution —

Markham’s eyes wandered round the loft.

The walls — the rough brick-work of which was smeared over with white-wash, — were covered with rude

pictures, glaringly coloured and set in common black wooden frames. These pictures were such as are sold in

low neighbourhoods for a few pence each, and representing scenes

,

in the lives of remarkable highwaymen,

murderers, and other criminals who had ended their days upon the scaffold. […]

But as if these pictorial mementos of crime and violent death were not sufficient to gratify the grange taste of

the occupants of that apartment, some hand, which was doubtless the agent of an imagination that loved to ‘sup

full of horrors,’ had scrawled with a burnt stick upon the wall various designs of an equally terrific nature.

Gibbets of all forms, and criminals in all the different stages of their last minutes in this life, were there

represented. The ingenuity of the draughtsman had even suggested improvements in the usual modes of

execution, and had delineated drops, halters, and methods of pinioning on new principles’ [sic]

Every thing in that spacious loft savoured of the scaffold!” REYNOLDS, The Mysteries of London, Vol. 2.

Disponível em: . Acesso em: 21 de fevereiro

de 2015.

87

Entretanto, Smithers não é de fato má pessoa; ele é apenas um homem embrutecido pelas

exigências cruéis de sua profissão.

Figuras 6 e 7. Cenas da preparação do cadáver e do quarto de execução em The Mysteries of London.

A desumanidade implica não enxergar o outro como um indivíduo, ignorando sua

natureza e tratando-o como algo não humano – e é sob esse aspecto que os três episódios

expostos acima se relacionam. Polly Bolter, por exemplo, explora seus filhos porque os vê

como utensílios que ela pode manipular como bem entende para garantir dinheiro sem

esforço, e puni-los é uma forma de discipliná-los para o trabalho, fazê-los “funcionarem”

devidamente da próxima vez. Da mesma forma, o Resurrection Man tem suas vítimas como

mercadorias que ele pode produzir e vender conforme a demanda. Já Smithers precisa se

mostrar indiferente à vida dos condenados que ele executa como parte de seu trabalho – mas o

fato de ter réplicas de forcas e cadáveres em sua casa parece sugerir que ele tem certo fascínio

pelo cadafalso.

Note-se que a desumanidade nesses casos é exercida principalmente através do

castigo corporal. Isso remete ao que Michel Foucault chama de ostentação de suplício no

contexto das execuções públicas realizadas até o início do século XIX na Europa. Ao falar do

tratamento cruel direcionado aos condenados, o qual incluía etapas sucessivas de humilhação

88

e sofrimento corporal, ele destaca dois objetivos principais do suplício: o primeiro é o de que,

“[e]m relação à vítima, ele deve ser marcante: destina-se, ou pela cicatriz que deixa no corpo,

ou pela ostentação de que se acompanha, a tornar infame aquele que é sua vítima”;160 e o

segundo, que abrange especialmente os espectadores do suplício, é o de que, ao torná-lo

público, “[p]rocurava-se dar o exemplo não só suscitando a consciência de que a menor

infração corria sério risco de punição; mas provocando um efeito de terror pelo espetáculo do

poder tripudiando sobre o culpado”.161 No entanto, uma boa parte desses espectadores era

atraída pelo suplício como uma forma de expiação: ver o criminoso sofrer até que a confissão

fosse arrancada dele ou, ainda, participar de sua punição era um direito do povo.162 Para ele,

portanto, o excesso de tortura aplicado à morte dos condenados transformava as execuções

públicas em espetáculos cujo efeito era não só chocar, mas também “satisfazer” o espectador.

As representações de desumanidade em The Mysteries of London funcionam

praticamente da mesma forma. Por meio delas, pretendia-se conferir um caráter realista à

obra, como se fossem de fato recortes da realidade avassaladora escondida no submundo da

cidade. Todavia, o mau gosto das cenas é tanto que extrapola os limites da verossimilhança; o

excesso de violência e de crueldade faz delas espetáculos que, por um lado, chocam, e por

outro, tornam sua morbidez atraente. Segundo Jarlath Killeen, uma das razões para as penny

bloods terem se popularizado tanto entre as massas era justamente a presença de cenas como

essas: à medida que o humanitarismo ganhava mais força na sociedade vitoriana, as

execuções públicas passaram a ser banidas por lei, mas o interesse em ver violência ainda não

havia acabado; desse modo, “as massas tiveram de recorrer ao consumo privado de literatura

violenta para obterem sua dose de sangue [...] como uma espécie de substituição imaginativa

dos espetáculos públicos de violência [...] proscritos no mesmo período”.163

Ao conjurar imagens de mutilação e de degeneração do corpo, o gótico apela para

um dos medos mais primitivos do ser humano: morrer não significa somente deixar de existir,

mas, antes, é ter a individualidade atacada pelo descaso e pela dureza da vida em sociedade

até ser completamente extinta por eles; nesse sentido, os casos relatados acima revelam o

quanto o indivíduo se fragiliza em confronto com a dinâmica do ambiente urbano. Quanto a

isso, Sally Powell afirma que as narrativas em que o corpo é violado de alguma forma

dramatizam e exploram “o horror corpóreo do cadáver de modo a provocar sensações no

160 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: história da violência nas prisões. Petrópolis: Vozes, 1999, p. 31.

161 Ibidem, p. 49.

162 Ibidem.

163 “the masses had to resort to private consumption of violent literature to get their bloody fill […] as a kind of

imaginative replacement for the public spectacles of violence […] outlawed in the same period.” KILLEEN,

op. cit., pos. 1028-1038.

89

leitor comum”, mas também expressam uma ansiedade profunda em relação à “crescente

percepção de que a santidade da individualidade é ameaçada pelas forças comerciais

agressivas geradas pela cidade industrial.”164 O desprezo ao corpo, que é a forma concreta da

existência humana, constitui um meio de evocar horror – o horror de ter a própria identidade

desfigurada e reduzida a uma função – e de negar a humanidade do outro.

2.3.4 A cidade: um labirinto vasto e desconhecido

Uma ambientação bastante emblemática do gênero gótico tradicional é o castelo, que

em geral se caracteriza como uma fortaleza antiga e monumental habitada por uma família

aristocrática cuja linhagem remonta à origem longínqua de todo um povo. Construído com

torres altas, pináculos longos, janelas arqueadas e tetos elevados, conferindo-lhe uma

verticalidade que sempre aponta para cima, é um lugar que inspira magnitude e dominância;

prolongando sua verticalidade para baixo, entretanto, há passagens estreitas, câmaras secretas,

catacumbas frias e masmorras escuras que se multiplicam em níveis cada vez mais profundos

e que por isso suscitam opressão e medo. A parte superior do castelo, em toda a sua

proeminência, corresponde ao espaço onde poder e tradição aparentemente prevalecem, mas a

sua parte inferior, que permanece oculta, é um repositório de mistérios e segredos que

atravessam gerações e que assombram terrivelmente seus moradores e muitas vezes toda a

comunidade. O castelo gótico, nesse sentido, se configura como um lugar de tensão entre

glória e ruína, presente e passado, mas especialmente entre civilização e barbárie.

Em muitos aspectos, Londres se constitui de maneira semelhante ao castelo gótico

em The Mysteries of London. Para começar, é uma cidade bem antiga, cuja fundação data do

século I, momento em que o Império Romano se encontrava em plena expansão territorial;

logo se tornou um importante centro comercial, o que contribuiu para que crescesse e se

estabelecesse como a capital da Inglaterra no século XI. Depois, é a cidade onde a Rainha

Vitória nasceu e firmou residência: o Palácio de Buckingham passou a ser a casa principal da

realeza britânica com a ascensão da jovem monarca ao trono. Em termos de arquitetura, ela é

164 “Narratives in which bodies are ‘burked’, scavenged, disinterred,

,

traded and dissected were entirely in

keeping with the penny blood’s sensationalist mission and regularly featured in its pages. Such fictions

afforded the writer full scope to dramatize and exploit the corporeal horror of the cadaver for the titillation of

the common reader. Yet they are also suggestive of an expression of profound social anxiety, most simply to

do with the sanctity of the corpse in the face of the demand created by the anatomist, but also related to the

growing perception that the sanctity of selfhood is threatened by the aggressive commercial forces generated

by the industrial city.” POWELL, Sally. “Black Markets and Cadaverous Pies: The Corpse, Urban Trade and

Industrial Consumption in the Penny Blood”. In: MAUNDER, Andrew; MOORE, Grace (Eds.). Victorian

Crime, Madness and Sensation. Hampshire: Ashgate Publishing Limited, 2004, p. 46.

90

repleta de construções de estilo gótico, especialmente palácios e igrejas medievais como o

Palácio e a Abadia de Westminster, que se destacam por suas torres pontiagudas e seus

ornamentos intrincados. Todos esses elementos, aliados às novidades urbanas que foram

implementadas durante o século XIX – tais como a iluminação pública, a pavimentação das

ruas, a construção de casas e prédios luxuosos, a popularização de espaços de lazer e

entretenimento, a fundação de escolas e universidades –, compunham a “parte superior” do

grande castelo metropolitano, fazendo dele um símbolo mundial de modernidade, elegância e

cultura. Em oposição gritante a esse espaço tão rico e imponente, Londres incorpora ainda

outro espaço, que se formou sobretudo em decorrência do desenvolvimento industrial,

composto por uma população densa e majoritariamente pobre, casas simples construídas com

tijolos encardidos, chaminés enegrecidas que expelem uma fumaça nociva, ruas numerosas

que se emaranham umas às outras, favelas que comportam pessoas e casebres além do limite e

que carecem de iluminação e saneamento básico, casas sinistras que acobertam crimes e

criminosos e todo tipo de imundície e de refugo que a cidade é capaz de produzir – essa é a

“parte inferior” do castelo metropolitano, que concentra o atraso, a pobreza e a decadência do

subúrbio londrino.

Embora se tenha usado as palavras “superior” e “inferior” para marcar a diferença

entre essas duas partes da capital inglesa, elas se dispõem geograficamente lado a lado e

correspondem, dessa forma, ao contraste entre centro e margem que vinha se intensificando

com o processo de urbanização. Historicamente, o centro é visto como um lugar de

dominância, pois reúne as atividades e os acontecimentos mais importantes da cidade; já a

margem, por agregar atividades e acontecimentos menos importantes ou associados a grupos

sociais específicos, é tida como um lugar de alteridade. No romance, porém, os dois se

identificam de outra forma: distritos como Holloway, Richmond e Upper Clapton, por

exemplo, são lugares respeitáveis, uma vez que seus moradores são personagens de reputação

e condição financeira distintas, enquanto outros, como Bethnal Green, St. Giles e Smithfield,

são infames, não só por abrigarem tipos imorais e personagens criminosos, mas

principalmente por apresentarem condições de vida totalmente precárias e desumanas. É por

meio desses contrastes, que não se distanciam tanto um do outro quanto parece, que Londres

assume a atmosfera gótica; tal como Alexandra Warwick afirma,

a cidade se tornou seu próprio Outro, predominantemente retratada como um

labirinto, uma selva, um pântano e uma ruína, e descrita como um lugar enegrecido,

apodrecido, ensombrado e enfermo. Mais importante ainda, talvez, essa cidade da

91

noite terrível é povoada por outros que ameaçam invadir ou sabotar a estrutura da

metrópole imperial.165

E é nos labirintos sem fim da cidade, que se desviam e se bifurcam em sentidos

múltiplos e inesperados, que se esconde o segredo gótico. Dos muitos bairros do subúrbio

londrino descritos em The Mysteries of London, Smithfield se destaca pelas cenas

estarrecedoras de miséria e de repugnância que evoca:

Por mais imunda, insalubre e repulsiva que a área de West Street (Smithfield), Field

Lane e Saffron Hill possa parecer hoje, ela era muito pior alguns anos atrás. Havia

poucas fossas, e mesmo assim, elas mal tinham canos para onde o esgoto pudesse

escoar. Os abatedouros de Cow Cross e os estabelecimentos em Castle Street, onde

se ferve carne de cavalo para alimentar os cães e os gatos da metrópole, exalam um

fedor nauseante impossível de ser tolerado por um estômago delicado. Os ossos dos

animais são pendurados nas janelas desses estabelecimentos para branquearem, o

que ofende os olhos tanto quanto o odor pútrido das carnes dá nojo. Mais de sessenta

cavalos são abatidos por dia em cada abatedouro, e muitos deles se encontram em

estágio terminal de doença quando são enviados para seu “eterno lar”. Caso não haja

demanda rápida pela “carne” favorita dos caninos e felinos por parte dos

fornecedores itinerantes, ela apodrece rapidamente, e o cheiro, que por si só seria

suficiente para provocar uma pestilência, impregna o bairro.

Como se nada pudesse faltar para tornar o distrito o mais imundo e insalubre

possível, a água é escassa. A falta de abundância desse elemento tão salutar justifica

a sujeira. Algumas das casas têm pequenos quintais onde os moradores criam

porcos. Pouco tempo atrás, o bebê de uma pobre viúva, que ocupava um quarto dos

fundos no térreo de um desses casebres, morreu, e foi colocado sobre a serapilheira

da cama enquanto a mãe saía para preparar o seu enterro. Durante sua ausência, um

porco entrou no quarto e comeu o rosto da criança morta!

Nesse bairro densamente populoso que estamos descrevendo, centenas de famílias

moram e dormem em um quarto. Quando o membro de uma dessas famílias morre, o

cadáver é mantido no mesmo quarto apertado em que os outros continuam morando

e dormindo. A pobreza frequentemente obriga os parentes infelizes a guardar o

corpo por dias – aliás, por semanas. A decomposição então acontece rapidamente; a

vida animal se reproduz logo, e em vinte e quatro horas, um grande número de

parasitas asquerosos é visto se movendo sobre ele. Os próprios coveiros ficam

enojados com esses espetáculos repulsivos.166

165 “By the end of the century, the city has become its Other, dominantly figured as labyrinth, jungle, swamp and

ruin, and described as blackened, rotten, shadowed and diseased. Most importantly perhaps, this city of

dreadful night is populated by others who threaten to overrun or undermine the fabric of the imperial

metropolis.” WARWICK, op. cit., p. 34.

166 “HOWEVER filthy, unhealthy, and repulsive the entire neighbourhood of West Street (Smithfield), Field

Lane, and Saffron Hill, may appear at the present day, it was far worse some years ago. There were then but

few cesspools; and scarcely any of those which did exist possessed any drains. The knackers’ yards of Cow

Cross, and the establishments in Castle Street where horses’ flesh is boiled down to supply food for the dogs

and cats of the metropolis, send forth now, as they did then, a foetid and sickening odour which could not

possibly be borne by a delicate stomach. At the windows of those establishments the bones of the animals are

hung to bleach, and offend the eye as much as the horrible stench of the flesh acts repugnantly to the nerves.

Upwards of sixty horses a day are frequently slaughtered in each yard; and many of them are in the last stage

of disease when sent to their ‘long home.’ Should there not be a rapid demand for the meat on the part of the

itinerant purveyors of that article for canine and feline favourites, it speedily becomes putrid; and a smell,

which would alone appear sufficient to create a pestilence, pervades the neighbourhood.

As if nothing should be wanting to render that district

,

as filthy and unhealthy as possible, water is scarce.

There is in this absence of a plentiful supply of that wholesome article, an actual apology for dirt. Some of the

houses have small back yards, in which the inhabitants keep pigs. A short time ago, an infant belonging to a

92

Algo que chama a atenção nesse bairro é a compressão, que aumenta de fora para

dentro: Smithfield acomoda ao mesmo tempo um mercado de carnes que funciona sem

nenhum cuidado sanitário e moradias muito mal conservadas; as casas, que já são pequenas

para comportar as pessoas com o mínimo de conforto, ainda contam com quintais imundos

ocupados por criações de animais; os cortiços contêm diversos quartos minúsculos que pouco

se distanciam uns dos outros, e em cada um deles moram homens, mulheres e crianças da

mesma família, que muitas vezes têm de sofrer o transtorno abominável de compartilhar o

espaço já limitado com um cadáver em decomposição. Além do confinamento e da

insalubridade do ambiente, há também a pobreza extrema, que é transformada em algo

bárbaro e até mesmo macabro. Quanto à falta de organização desse tipo de lugar, Anne

Witchard, em seu artigo sobre a fobia do subúrbio observada na era vitoriana, diz que “[o]

desenvolvimento do subúrbio no século XIX induzia um tratamento gótico, sendo retratado

como um espaço onde os limites são minados e o sentido desmorona [...]”. Como se vê, o

subúrbio é de fato uma excrescência da metrópole: ele se mostra tão drasticamente diferente

da dita civilização londrina que se torna um outro que parece não fazer parte da então maior

capital do mundo, e assim, representa um alastramento do caos urbano. Por isso, Witchard

complementa: “[e]ssa transformação da expansão de Londres em um outro é indicativa da

vulnerabilidade gerada pelas mudanças na cultura burguesa e pela ascensão do subúrbio, que

mudou o sentido da cidade e o que significava ser um londrino.”167

2.4 The Mysteries of London: uma narrativa de horror, melodrama e sensacionalismo

No epílogo do primeiro volume de The Mysteries of London, o narrador diz o

seguinte:

poor widow, who occupied a back room on the ground-floor of one of these hovels, died, and was laid upon the

sacking of the bed while the mother went out to make arrangements for its interment. During her absence a pig

entered the room from the yard, and feasted upon the dead child’s face!

In that densely populated neighbourhood that we are describing hundreds of families each live and sleep in one

room. When a member of one of these families happens to die, the corpse is kept in the close room where the

rest still continue to live and sleep. Poverty frequently compels the unhappy relatives to keep the body for days

– aye, and weeks. Rapid decomposition takes place; – animal life generates quickly; and in four-and-twenty

hours myriads of loathsome animalculae are seen crawling about. The very undertakers’ men fall sick at these

disgusting – these revolting spectacles.” REYNOLDS, op. cit., 2836-2857.

167 “Nineteenth-century suburban development would invite Gothic treatment as spaces where boundaries are

undermined and meaning collapses (…). This ‘othering’ of London’s sprawl is symptomatic of the

vulnerability induced by the changes within bourgeois culture and the rise of the suburb as it altered the

meaning of the city and what it meant to be a Londoner.” WITCHARD, Anne. “‘A Fatal Freshness’: Mid-

Victorian Suburbophobia”. In: PHILLIPS, Lawrence; WITCHARD, Anne (Eds.). London Gothic: Place,

Space and the Gothic Imagination. London: Continuum Literary Studies, 2010, p. 29.

93

Conduzimos nosso tema aventuroso até aqui, e embora já tenhamos contado muitas

coisas, quantas mais ainda faltam contar!

Não dissemos desde o início que apresentaríamos nossos leitores a uma cidade de

estranhos contrastes? E quem dirá que não cumprimos nossa promessa?

[...]

E deixemos que aqueles que folhearam o que já escrevemos façam uma pausa antes

de inferirem disso uma lição de moral – pois eles ainda não podem antecipar nosso

plano, tampouco ler nosso propósito.

Não – pois temos ainda mais coisas para escrever, e eles têm mais a aprender sobre

os MISTÉRIOS DE LONDRES.

[...]

Pois a palavra “LONDRES” constitui um tema cujos detalhes, sejam bons ou maus,

são inexauríveis: nem mesmo nós sabíamos, quando pegamos nossa caneta para

iniciar o assunto, quão vasto – quão imenso – quão abrangente ele poderia ser!168

E já quase no final do segundo volume do romance, ele reafirma:

Acaso o leitor começa a imaginar que nosso assunto está quase esgotado – que os

mistérios de Londres estão praticamente todos desvendados?

Ele está enganado; pois Londres é uma cidade que contém tanta variedade de

instituições estranhas, públicas e privadas, e que apresenta tantas fases marcantes

para a contemplação do observador perspicaz, que o escritor que resolve se

aproveitar inteiramente dos materiais heterogêneos fornecidos a ele não pode ficar

sem o que comentar ou narrar tão rapidamente.

[...]

Não – pois tudo que é mais bonito e deslumbrante, bem como tudo que é mais

imundo e repulsivo – pois tudo que se destaca pelo talento ou se degrada pela

ignorância – pois tudo que é mais admirável pela virtude ou mais detestável pelo

crime – pois tudo que é mais refinado em elegância ou mais estranho em barbarismo

– todas essas fases assombrosas são encontradas, seja na glória ou na infâmia, na

cidade imperial das Ilhas Britânicas!169

168 “THUS far have we pursued our adventurous theme; and though we have already told so much, how much

more does there remain yet to tell!

Said we not, at the outset, that we would introduce our readers to a city of strange contrasts? and who shall say

that we have not fulfilled our promise?

[…]

And let those who have perused what we have already written, pause ere they deduce therefrom a general

moral; — for as yet they cannot anticipate our design, nor read our end.

No:— for we have yet more to write, and they have more to learn, of the MYSTERIES OF LONDON.

[…]

For the word ‘LONDON’ constitutes a theme whose details, whether of good or evil, are inexhaustible: nor

knew we, when we took up our pen to enter upon the subject, how vast — how mighty — how comprehensive

it might be!” REYNOLDS, op. cit., pos. 26595-26631.

169 “Haply the reader may begin to imagine that our subject is well-nigh exhausted — that the mysteries of

London are nearly all unveiled?

He errs; for London is a city containing such a variety of strange institutions, private as well as public, and

presenting so many remarkable phases to the contemplation of the acute observer, that the writer who is

resolved to avail himself fully of the heterogeneous materials thus supplied him, cannot readily lack food for

comment and narrative.

[…]

No: — for all that is most gorgeous and beautiful, as well as all that is most filthy and revolting, — all that is

best of talents or most degraded of ignorance, — all that is most admirable for virtue, or most detestable for

crime, — all that is most refined in elegance, or most strange in barbarism, — all, all these wondrous phases

are to be found, greatest in glory, or lowest in infamy, in the imperial city of the British Isles!” REYNOLDS,

94

De fato, tal como a cidade que retrata, The Mysteries of London é uma obra

multifacetada: seu enredo múltiplo e extenso intercala longos relatos em primeira pessoa de

personagens revelando suas histórias de vida, diatribes políticas e dados jornalísticos sobre

fatos da época; não foi à toa que o próprio G. W. M. Reynolds tenha se referido a ela como

uma “Enciclopédia de histórias”.170 De modo a dar conta dessa miríade de histórias e de

assuntos

,

e não deixar que a narrativa se perdesse, o autor unificou o texto seguindo o padrão

do melodrama gótico, isto é, a combinação do horror com os binários morais do

melodrama;171 e em conformidade com os padrões do subgênero penny blood, ainda

acrescentou um toque bem sensacionalista ao romance como um todo. A mistura desses três

estilos parece excessiva, mas é justamente com o objetivo de explorar o excesso como um

modo de expressão do horror que ela é utilizada.

De acordo com Peter Brooks, o melodrama é um estilo particularmente associado

com emoções fortes, polarização moral, situações extremas, expressões exageradas e

extravagantes, suspense, peripécias empolgantes e, sobretudo, com a dicotomia entre o bem e

o mal, que serve para “revelar a presença e a operação deles como forças reais no mundo” e

sugere “a necessidade de reconhecer e confrontar o mal, combatê-lo e expulsá-lo, de modo a

remir a ordem social.”172 Através desses exageros e contrastes, o melodrama busca articular o

“oculto moral”, conceito que Brooks descreve como um depósito que guarda os desejos e os

tabus mais básicos do ser humano, com a realidade cotidiana;173 ou seja, ele pretende trazer à

tona verdades ocultas que devem fazer parte da “existência social e consciente do homem”.174

No caso de The Mysteries of London, o próprio título já evidencia seu apelo melodramático:

os “mistérios de Londres” são justamente aqueles que existem nos nichos mais escondidos do

grande labirinto de ruas que compõe a cidade e que mostram o que o mundo e a natureza

humana têm de pior; ao serem revelados e descritos, eles acabam induzindo o leitor a fazer

um julgamento moral e a se entregar a emoções intensas e opostas.

The Mysteries of London, Vol. 2. Disponível em:

240.htm>. acesso em: 26 de fevereiro de 2015.

170 HUMPHERYS, “An Introduction to G.W.M. Reynolds’s ‘Encyclopedia of Tales’”, p. 123.

171 Ibidem, p. 131.

172 “[The connotations of melodrama] include: the indulgence of strong emotionalism; moral polarization and

schematization; extreme states of being, situations, actions; overt villainy, persecution of the good, and final

reward of virtue; inflated and extravagant expression; dark plottings, suspense, breathtaking peripety. […]

The polarization of good and evil works toward revealing their presence and operation as real forces in the

world. Their conflict suggests the need to recognize and confront evil, to combat and expel it, to purge the

social order.” BROOKS, Peter. The Melodramatic Imagination: Balzac, Henry James, Melodrama, and the

Mode of Excess. New Haven: Yale University Press, 1996, pp. 11-13.

173 Ibidem, p. 5.

174 Ibidem, p. 19.

95

Entretanto, é em um dos lugares mais ostensivos da capital que a cena mais

emblemática do melodrama na narrativa acontece: durante um baile suntuoso no Palácio de

Buckingham, lar da Rainha Vitória e do Príncipe Albert, um garoto pobre chamado Henry

Holford, que havia se infiltrado na residência real para ficar mais perto de sua bela e amada

Soberana, de repente começa a meditar sobre a realidade londrina. Note-se que à medida que

suas comparações avançam, tableaux ricos em dramaticidade se formam:

No momento em que a festividade e o prazer estavam no auge nos salões reais, havia

mães em sótãos vazios, celas escuras, ou mesmo desabrigadas nas ruas – mães que

pressionavam seus filhos famintos contra o peito e imaginavam se algum dia teriam

o que comer novamente.

Enquanto a mesa real rangia sob o peso que os vasilhames de ouro e as iguarias mais

seletas que a fecundidade da terra, a abundância dos céus ou a ingenuidade de um

homem era capaz de oferecer – enquanto o produto mais rico de vinhedos férteis

cintilava nas taças de cristal – quantos milhares de súditos daquela senhora tão

exaltada umedeciam suas migalhas frugais com as lágrimas que se derramavam pela

consciência da labuta mal retribuída e do aperto da amarga pobreza!

Música deleitosa aqui, e o choro das crianças com fome lá; candelabros de prata

esbanjando luz em um salão grandioso, e um archote tremeluzente iluminando as

paredes nuas e manchadas de umidade de um sótão miserável; sedas e cetins, trapos

e nudez; indolência de mimos e luxo; trabalho árduo e mal pago; homenagem e

reverência; descaso e opressão; a gratificação de qualquer capricho; a falta de

qualquer necessidade; nenhuma preocupação com o amanhã aqui, nenhuma

esperança pelo amanhã lá; a certeza de que a abundância do dia será renovada, a

ignorância total de onde o pão do dia seguinte pode vir; alegria e risada, gemido e

pesar; um palácio eterno de um lado, e a ansiedade caso o casebre miserável seja

substituído pelo asilo amanhã – esses são os contrastes terríveis que a nossa esfera

social apresenta!175

Mesmo retratando uma cidade com tantos vícios, Reynolds também reserva um

espaço em sua obra para tratar da virtude presente nela: além do incorruptível Richard

Markham, personagens como Ellen Monroe e seu pai, o Sr. Monroe, o Conde e a Condessa

175 “At that moment when festivity was highest, and pleasure was most exciting in the regal halls, there were

mothers in naked attics, dark cellars, or even houseless in the open streets, — mothers who pressed their

famished little ones to their bosoms, and wondered whether a mouthful of food would ever pass their lips

again.

While the royal table groaned beneath the weight the golden vessels and the choicest luxuries which earth’s

fruitfulness, heaven’s bounty, or man a ingenuity could supply, — while the raciest produce of fertile

vineyards sparkled in the crystal cups, — at that same period, how many thousands of that exalted lady’s

subjects moistened their sorry crust with tears wrung from them by the consciousness of ill-requited toil and

the pinching gripe of bitter poverty!

Delicious music here, and the cries of starving children there; — silver candelabra pouring forth a flood of

lustre in a gorgeous saloon, and a flickering rushlight making visible the naked and damp-stained walls of a

wretched garret; — silks and satins, rags and nudity; — luxurious and pampered indolence; crushing and ill-

paid labour; — homage and reverence, ill-treatment and oppression; — the gratification of every whim, the

absence of every necessary; — not a care for to-morrow here, not a hope for to-morrow there; — a certainty of

a renewal of this day’s plenty, a total ignorance whence the next day’s bread can come; — mirth and laughter,

moans and sorrowing; — a palace for life on one hand, and an anxiety lest even the wretched hovel may not be

changed for a workhouse to-morrow; — these are the appalling contrasts which our social sphere presents to

view!” REYNOLDS, The Mysteries of London, Vol. 2. Disponível em:

. Acesso em: 26 de fevereiro de 2015.

96

Alteroni e sua filha, a Princesa Isabella, o republicano Thomas Armstrong (que se torna

amigo do herói quando os dois são injustamente presos em Newgate), Eliza Sydney,

Katherine Wilmot (a sobrinha do executor público que é na verdade meia-irmã de Richard e

Eugene), Gibbet (cujo nome verdadeiro é John Smithers), Morcar (um cigano que acompanha

Richard durante a guerra na Itália como seu escudeiro) e outros – todos eles criam um laço

muito forte entre si por intermédio de Richard e sua boa vontade em ajudar as pessoas –

simbolizam uma espécie de resistência ao caos e à imoralidade que se instauram em Londres.

Tal como Louis James observa em seu prefácio do romance,

[p]ara os leitores de Reynolds, os personagens ficcionais tomam a forma de

sinédoques morais, uma parte representando o todo. [...]

,

Personagens “bons” como

Richard Markham ou Ellen Monroe [...] na verdade não têm classe, e representam

uma humanidade corajosa por quem leitores de qualquer origem podiam sentir

empatia.176

Além disso, esses personagens são em grande parte responsáveis pelas mudanças

pequenas porém significativas que ocorrem no cenário vicioso da cidade: eles podem não

contribuir diretamente para a reforma social que é requerida no romance – visto que as

instituições abusivas, que são as principais causadoras das mazelas sociais, continuam

existindo no final –, mas, aparecendo no lugar e no momento certos por coincidência para

ajudar ou socorrer aqueles que se encontram em situações difíceis, eles impedem que o crime

e a imoralidade façam mais uma vítima. Desse modo, eles se comportam como heróis

secundários da trama e são recompensados por sua virtude. Para James, “[a] felicidade final

dos personagens ‘bons’ na ficção de Reynolds pode parecer uma convenção”, mas também

reflete “um otimismo mais amplo em relação à luta humana. De maneira controversa,

Reynolds vê o destino sendo regido não por uma Providência divina benevolente, mas por

uma ação humana corajosa.”177 Tal como faz com a sobrenaturalidade do gótico tradicional, o

gótico urbano rejeita o poder da Providência divina presente no melodrama, e isso reforça a

efetividade da ação humana em The Mysteries of London.

O sensacionalismo, por sua vez, é um estilo oriundo do teatro que foi apropriado pela

ficção em prosa como uma forma de escandalizar o leitor. Assim como o melodrama, ele tem

176 “For Reynolds’s readers, fictional characters take the form of moral synecdoche, a part representing the

whole. […] ‘Good’ characters like Richard Markham or Ellen Monroe are [...] in effect classless, the

representation of courageous humanity with whom readers of any background could empathise.” JAMES, op.

cit., pos. 200-205.

177 “The final happiness of the ‘good’ characters in Reynolds’s fiction may appear a convention. But in

Reynolds’s work it also reflects a wider optimism about the human struggle. Controversially, Reynolds sees

destiny as directed not by a benevolent divine Providence, but by courageous human endeavour.” Ibidem, pos.

205.

97

a ver com o choque resultante da descoberta de um segredo, ou, ainda, da atestação de fatos

que, de tão absurdos e repulsivos, parecem pouco prováveis de acontecerem, mas, ao mesmo

tempo, tão ricos em detalhes que podem ser reais. A atração pelo segredo, no entanto, se

origina do romance gótico, que, segundo Brooks,

busca uma epistemologia das profundezas; ele é fascinado pelo que jaz escondido na

masmorra e no sepulcro. Ele dá voz às profundezas, trazendo à tona e à ação as

forças escondidas e aprisionadas lá de forma violenta.178

No romance, um elemento conspícuo do sensacionalismo está na crueza com que

cenas de morte e de miséria são descritas, tais como as que aparecem nas seções anteriores,

que se constituem em mistérios guardados nas profundezas do submundo londrino. Com isso,

o leitor é exposto a situações tão excessivas que seu sistema nervoso fica um tanto abalado –

não só pelo horror e pela revolta que elas causam, mas também pelo excitamento mórbido de

visualizá-las, mesmo que mentalmente. A combinação do horror gótico com melodrama e

com o sensacionalismo, portanto, põe The Mysteries of London em conformidade com a

cultura sentimental que se fortaleceu na era vitoriana, pois são estilos que apelam

marcadamente para as emoções e as sensações do público leitor – tanto para as “boas” como a

empatia e a comoção quanto para as “ruins” como o choque e o prazer do assombro – e que

“insistem que a realidade pode ser empolgante, igual às demandas da imaginação, [o que

significa] principalmente a imaginação moral, consonante com conflitos éticos grandes e

básicos.”179

178 “The Gothic novel seeks an epistemology of the depths; it is fascinated by what lies hidden in the dungeon

and the sepulcher. It sounds the depths, bringing to violent light and enactment the forces hidden and entrapped

there.” BROOKS, op. cit., p. 19.

179 “These are modes which insist that reality can be exciting, can be equal to the demands of the imagination,

[which means] primarily the moral imagination, at play with large and basic ethical conflicts.” Ibidem, p. 6.

98

CAPÍTULO 3

Um corte da navalha, outro do cutelo: crime, mercado negro e canibalismo

em The String of Pearls: A Romance

Figura 8. Primeira página de The String of Pearls: A Romance. In: The People’s Periodical and Family Library

(Novembro, 1846).

De acordo com um provérbio antigo e bastante conhecido, não se deve julgar um

livro pela capa, o que equivale a dizer que não se deve julgar o valor de algo ou alguém com

99

base em sua aparência exterior. Embora seja o sentido metafórico que prevaleça no uso

corrente desse provérbio, seu sentido literal também tem certa validade. Em geral, a capa de

um livro cria expectativas no leitor, informando-lhe não só título e autor, mas também a que

gênero o livro pertence e o que se deve esperar de seu enredo – e, muitas vezes, é a partir dela

que o leitor considera se o lerá ou não. No entanto, ao mesmo tempo em que tem o poder de

mostrar fragmentos de conteúdo, a capa também pode disfarçá-los, fazendo com que o leitor

se surpreenda durante a leitura.

A figura acima, por exemplo, não mostra a capa de um livro, mas a primeira página,

em sua versão original publicada em periódico, de The String of Pearls: A Romance (1846-

1847), um marco na história das penny bloods e um dos poucos exemplares do gênero que

chegaram à posteridade. À primeira vista, não há nada nessa página que mereça muita

atenção, visto que os elementos contidos nela – título do periódico, nome do editor, número

de edição, data, preço, título da história e ilustração – são comuns à maior parte desse tipo de

publicação. Entretanto, considerando a importância do título e das ilustrações das penny

bloods na conquista do público leitor,180 torna-se interessante analisar o que esses elementos

têm a dizer sobre a história antes de discutir qualquer coisa relacionada ao seu enredo.

As penny bloods narravam crimes violentos e acontecimentos chocantes na cidade

como uma forma de evocar medo e terror, e por isso, enquadravam-se no estilo conhecido

como gótico urbano. Familiarizado com essa temática, um leitor vitoriano, ou mesmo

contemporâneo, possivelmente esperaria que uma penny blood tivesse um título horripilante e

ilustrações que mostrassem cenas terríveis de violência e morte – mas a primeira página de

The String of Pearls não apresenta nem um, nem outro. Para começar, o título da obra, cuja

tradução literal é “O colar de pérolas”, parece se aplicar melhor a uma história de amor, pois a

imagem de um colar de pérolas remete com frequência à de uma mulher usando-o em seu

pescoço; a partir daí, pode-se supor que ela esteja envolvida em um romance e tenha ganhado

o colar como um presente de seu admirador, e que esse fato tenha gerado complicações no

relacionamento entre os dois e desencadeado as reviravoltas de toda uma trama.

Alternativamente, o título caberia a uma narrativa de crimes: sendo um colar de pérolas um

item altamente precioso e, portanto, muito cobiçado por ladrões, o roubo dele poderia ser

motivo de grande confusão e, claro, dar início a uma investigação, que preencheriam um livro

inteiro. A ilustração, por sua vez, transmite dramaticidade, e até mesmo um pouco de

180 Esses títulos eram geralmente compostos por um nome seguido de um epíteto ou de uma frase à guisa de tema

da história. Eram simples e pouco originais, porém impactantes e sensacionalistas. Conforme mencionado no

primeiro capítulo

,

desta dissertação, as ilustrações eram dramáticas e mostravam algum momento de tensão da

trama.

100

gravidade: o homem provavelmente traz notícias desagradáveis para a mulher, que chora ao

recebê-las, e o cão, que não parece totalmente indiferente à situação apesar da posição

relaxada em que se dispõe, a observa. Dessa forma, ela indetermina o gênero, podendo ilustrar

tanto uma história de amor quanto uma narrativa de crimes, ou outro gênero semelhante.

Tais conjeturas sobre o que o título e a ilustração sugerem a respeito de The String of

Pearls, como se pode ver, terminam em um impasse. Afinal, esses elementos revelam ou

disfarçam o conteúdo da obra? Na verdade, eles fazem os dois. A princípio, a história

realmente trata de um romance mal resolvido e de um crime, que têm em comum um

determinado colar de pérolas, mas esses são apenas temas secundários que, além de

complementarem o enredo, disfarçam – ou, melhor dizendo, direcionam para o final – seu

verdadeiro tema principal. Apesar da despretensão, The String of Pearls é uma narrativa

gótica incomum e interessante: o mistério e a surpresa não são exatamente seus pontos mais

fortes, mas os horrores mostrados nela chocam pela absurdidade e pela decadência que

representam, incluindo aprisionamento, escravidão e, o mais abjeto de todos, canibalismo. A

popularidade dessa penny blood, porém, se deve sobretudo ao seu protagonista, um barbeiro

esquisito e assustador que atende pelo nome de Sweeney Todd.

Desde sua primeira aparição nas páginas de The String of Pearls, Sweeney Todd se

tornou um ícone da cultura popular vitoriana e permanece até hoje uma figura notória do

imaginário britânico. Sua fama é, de fato, merecida: ele é um homem impiedoso que mata

seus clientes mais abastados para lhes roubar e depois dispõe dos corpos fornecendo a carne

deles à Sra. Lovett, uma pâtissière,181 para que ela a use como recheio de suas deliciosas

tortas. Assim como Hamlet e Iago, ambos personagens célebres que roubaram a cena das

tragédias de William Shakespeare, o barbeiro ocupou um espaço tão grande dentro da história

que acabou ficando maior que ela, e, por conta disso, a penny blood passou a ser conhecida e

frequentemente mencionada como o conto de Sweeney Todd. Entretanto, o vilão não surgiu

na Inglaterra, tampouco no período vitoriano; ele, na verdade, faz parte de uma lenda urbana

que, não obstante a incerteza quanto à sua verdadeira origem, provavelmente veio da França e

já vinha sendo contada e recontada por muito tempo antes de estourar no século XIX. Nesse

181 Esse termo é de origem francesa e deriva de pâtisserie, uma categoria muito específica da culinária voltada

para o preparo de pratos doces ou salgados envoltos ou compostos por uma pasta ou massa assada, tais como

bolos, tortas, biscoitos, quiches, etc. Em The String of Pearls, o termo utilizado para designar a especialidade

da Sra. Lovett é pastry cook, pois suas tortas se enquadram em um tipo de comida genericamente chamada de

pastry em inglês. Em português, no entanto, torna-se difícil achar um termo equivalente, uma vez que, pelo

menos no Brasil, esses alimentos são comumente feitos por padeiros, confeiteiros ou, ainda, pasteleiros, e

nenhuma dessas categorias corresponde exatamente à especialidade da Sra. Lovett. Desse modo, decidi não

traduzir o termo, mas, em vez disso, mantê-lo em francês, considerando que essa é a língua tradicional da

culinária em geral.

101

sentido, The String of Pearls não pode ser considerada de fato o conto original de Sweeney

Todd, mas constitui o primeiro registro escrito da lenda que o concebeu.

Este capítulo, portanto, se dedica à análise dessa obra e de que forma o gótico urbano

se apresenta nela. De modo a entender melhor como ela se desenvolveu, parte-se da lenda

urbana que inspirou sua elaboração; depois, já no país e na época em que foi publicada, faz-se

uma breve contextualização de seu enredo para então discorrer sobre as características e os

elementos que fazem dela uma narrativa de horror – e também, em certos aspectos, de humor

negro.

3.1 O terreno amaldiçoado da Rue de la Harpe: uma lenda parisiense

As penny bloods em geral apresentavam enredos pouco inovadores e bastante

improváveis, mas que atraíam o público leitor justamente pelo misto de sensações que lhe

ofereciam. A princípio, a história de Sweeney Todd, conforme narrada em The String of

Pearls, parecia tão absurda que muito pouco da realidade poderia ser inferido dela; mais

tarde, porém, ela se mostrou tão intrigante que, quase um século depois de sua publicação,

despertou o interesse de certos leitores e escritores em investigar possíveis fontes nas quais

ela teria sido baseada. Em seu estudo notável sobre o personagem, Robert L. Mack cita vários

registros da história do barbeiro antecedentes à narrativa. Segundo ele, alguns pesquisadores,

como o jornalista Peter Haining e o crítico de teatro Henry Chance Newton, apontaram que a

história havia se originado de uma balada medieval escrita em francês, que narrava

brevemente o negócio secreto do barbeiro e da pâtissière que acontecia na Rue des

Marmousets em Paris; outros, como a acadêmica Elizabeth Nitchie e o também crítico de

teatro M. Willson Disher, alegaram que duas versões da história escritas em inglês já haviam

sido publicadas no início do século XIX, uma em 1822 como um conto intitulado “Terrific

Story of the Rue de la Harpe at Paris”, no periódico The Tickler Magazine; e a outra, como o

conto “A Terrific Story of the Rue de la Harpe”, em 1824, na revista mensal The Tell-Tale,

ambas sem autor especificado. Haveria, ainda, pequenos relatos da história contidos em obras

como Le Théâtre des Antiquités de Paris (1612), de Jacques du Breuil, e Dictionnaire

historique de Paris (1828), de Antoine Nicolas Béraud e Pierre Joseph Spiridon Dufey; neles,

consta que os assassinatos cometidos pela dupla teriam ocorrido em tempos longínquos,

datando do século XIII, pelo menos.182

182 Para mais detalhes, ver MACK, Robert L. The Wonderful and Surprising History of Sweeney Todd: The Life

and Times of an Urban Legend. New York: Continuum, 2007b, pp. 156-172.

102

Não se pode apontar uma fonte ou uma influência definitiva para o enredo de The

String of Pearls, tampouco afirmar com precisão como, quando e onde a história do barbeiro e

da pâtissière surgiu, visto que a discrepância entre as informações coletadas até agora é

grande: note-se, por exemplo, que o intervalo de tempo entre a era medieval e a era vitoriana é

bem longo, e que uma balada e um conto possuem formas bastante distintas. Além disso, é

possível que essa penny blood também tenha recebido influências da literatura produzida na

época em que foi escrita e de tradições orais do folclore europeu.183 A partir dos textos

precedentes a The String of Pearls referidos acima, porém, pode-se afirmar com certa

segurança que a lenda em torno desses parceiros de crime é de origem francesa, não só por

seus registros mais antigos terem sido escritos em francês, mas também por situarem os

acontecimentos em Paris, seja na Rue des Marmousets, seja na Rue de la Harpe. Outro ponto

em comum entre esses textos é que, em sua maioria, seguem mais ou menos o mesmo padrão

de enredo, sempre incluindo o barbeiro, vítimas desaparecidas, passagens subterrâneas onde

os corpos são encontrados, a pâtissière e suas tortas de carne e, por fim, a demolição das casas

onde funcionavam a barbearia e a pâtisserie.

De acordo com a lenda, havia em Paris um barbeiro cujo estabelecimento se

localizava na Rue de la Harpe. Um dia, dois viajantes, acompanhados por um cão, foram à

cidade para tratar de certos assuntos urgentes, mas antes de começar, decidiram passar na

barbearia, de modo a ficarem mais apresentáveis. Entretanto, o tempo

,

que eles tinham era tão

curto que enquanto um estava sendo barbeado, o outro foi para a rua adiantar alguns negócios.

Quando o viajante voltou, porém, viu que seu amigo não estava lá, o que o surpreendeu;

então, ele perguntou ao barbeiro o que havia acontecido, e este lhe contou que o homem

pagara pelo serviço e saíra assim que ficara pronto, sem deixar nenhum recado. Notando que

o cão, que pertencia ao seu amigo, permanecia obedientemente na porta do estabelecimento,

ocorreu ao viajante que seu amigo não devia ter ido muito longe, e então decidiu esperá-lo ali

mesmo.

O tempo passou e o homem ainda não havia aparecido; o viajante estava ficando

cada vez mais impaciente, assim como o cão, que tremia e uivava de um jeito alarmante. Ele

começou a suspeitar que algo muito estranho havia ocorrido naquele lugar, e então interrogou

o barbeiro novamente, mas desta vez com um tom meio acusador. O barbeiro, bastante

183 Mack argumenta que Charles Dickens pode ter exercido influência indireta na elaboração de The String of

Pearls por meio de seus romances, especialmente The Pickwick Papers (1836) e Martin Chuzzlewit (1843), nos

quais o autor faz referências a práticas de antropofa*gia e de canibalismo urbano, ou, ainda, dos plágios de seus

romances feitos pelos escritores de penny bloods. Além disso, temas como esses fazem parte de histórias

folclóricas nas quais pessoas, especialmente crianças, são devoradas por monstros, ogros, gigantes e outras

figuras ameaçadoras. Para mais detalhes, ver MACK, op. cit., pp. 148-166.

103

ofendido, ordenou que ele saísse de sua barbearia, e tão logo este havia lhe virado as costas,

trancou a porta. O viajante, de tão aflito que estava, causou comoção na rua, contando suas

suspeitas sobre o desaparecimento de seu amigo para todos que passavam por ali; e o cão, que

não havia saído do lugar, nem mesmo com os apelos do viajante, continuava latindo e

ganindo. Em questão de minutos, um grupo de pessoas indignadas se reuniu e invadiu a

barbearia em busca do viajante desaparecido, mas em vão, pois nenhum sinal dele foi

encontrado. O barbeiro estava tentando dispersar a multidão para fora de seu estabelecimento

quando o cão pulou em sua garganta e quase o matou. Depois de muito esforço para apartá-

los, os invasores soltaram o cão para ver aonde ele os levaria; o animal então correu para o

porão, farejou ao redor e, por fim, uivou angustiado. O grupo descobriu uma fenda na parede

do porão que dava para o porão da casa ao lado, onde morava um cozinheiro184 que possuía

uma renomada pâtisserie, e lá jazia o corpo do viajante desaparecido.

O barbeiro e seu vizinho passaram por um julgamento, no qual foi revelado que eles

eram, na verdade, cúmplices de um crime hediondo: enquanto um cortava a garganta de seus

clientes, que geralmente vinham de outra cidade e traziam dinheiro com eles, para roubar seus

pertences, o outro cortava seus corpos em pedaços e usava a carne deles para rechear suas

tortas, que eram tidas como as mais gostosas de Paris. Juntos, eles pretendiam – e

conseguiram, afinal – acumular uma fortuna considerável. Os dois foram executados por

desmembramento, e, em seguida, a lei ordenou que suas casas fossem demolidas e proibiu que

outras fossem construídas no lugar, de modo a transformar o espaço em um memorial do

grande horror que havia se passado ali.185

Lendas urbanas como essa, especialmente quando envolvem atos chocantes e mortes

violentas, costumam dar margem a toda sorte de especulações e teorias da conspiração.

Enquanto alguns se restringiram à busca por fontes inspiradoras para o autor de The String of

Pearls, outros pretenderam mostrar que a parceria macabra entre Sweeney Todd e a Sra.

Lovett havia de fato existido fora da ficção. A história já foi associada a diversos casos de

184 Não se sabe ao certo se, na lenda, a pessoa que fazia as tortas era um homem ou uma mulher. A balada

medieval trazida a público por Haining e Newton (na verdade, cada um apresentou uma versão diferente da

mesma) contém versos indicando que se tratava de uma “mulher feroz” (MACK, op. cit., pp. 157-158); os

relatos publicados em francês por Breuil e Béraud e Dufey falam de un pâtissier em vez de une pâtissière

(Ibidem, p. 163); e as versões em inglês publicadas em The Tickler Magazine e em The Tell-Tale se referem à

pessoa como pastry cook, e não há ocorrências de pronomes que indiquem seu gênero nos textos (Ibidem, pp.

161). Em vista disso, da dificuldade já mencionada em achar um termo equivalente a essa especialidade e da

predominância, no português, da desinência de gênero masculino quando não se pode definir o gênero de uma

categoria, escolhi, neste resumo, me referir à pessoa que fabrica as tortas pelo termo geral “cozinheiro”.

185 Para os fins deste capítulo, os elementos gerais da lenda foram resumidos, tendo-se como base a versão

publicada em 1824 na revista The Tell-Tale, que é citada na íntegra em MACK, op. cit., pp. 160-161. Eu

escolhi essa versão porque parece mais completa e se assemelha bastante à narrativa conforme ficou conhecida

em The String of Pearls.

104

crimes (reais ou não) que, se não incluíam necessariamente canibais, envolviam barbeiros,

cozinheiros e açougueiros considerados um tanto suspeitos, mas nunca se ofereceu prova

suficientemente convincente de que Sweeney Todd tenha vivido ou sido baseado em uma

pessoa de verdade.186 Assim como os contos de fadas, que, por trás da fantasia, têm como

finalidade essencial ensinar e domesticar as crianças, as lendas urbanas representam as

ansiedades de uma comunidade em relação ao seu ambiente e, por isso, exercem a função

moral de alertar as pessoas sobre os perigos que podem encontrar na cidade. O horror que, na

lenda, ficou marcado na memória dos parisienses pelo terreno vazio da Rue de la Harpe está

justamente na incongruência entre o espaço civilizado onde os crimes teriam acontecido e a

selvageria primitiva com a qual teriam sido cometidos. Nesse sentido, Mack afirma que a

história do barbeiro assassino é, em determinados aspectos, um mito antiurbano, um “conto

admonitório contado por um narrador rural para um público rústico sobre a cidade estranha

que literalmente consome aqueles que são tolos ou ingênuos o bastante para se tornarem

vítimas de seus atrativos [...]”.187 E que outro lugar poderia inspirar medos desse tipo e

guardar tantos mistérios se não Londres, a maior capital do mundo no século XIX em pleno

desenvolvimento industrial?

3.2 O barbeiro demoníaco da Rua Fleet: um conto londrino

Depois de circular discretamente em Paris por alguns anos, a história do barbeiro e

da pâtissière finalmente se estabeleceu em Londres e, de uma lenda urbana, se transformou

em uma penny blood altamente popular: The String of Pearls foi publicada entre novembro de

1846 e março de 1847, em partes semanais, nas páginas de The People’s Periodical and

Family Library (1846-1847), um dos diversos periódicos que saíam do escritório gerido por

Edward Lloyd (1815-1890) na Salisbury Square.

Considerado por muitos críticos e estudiosos como “o pai da imprensa barata”, Lloyd

foi um dos principais editores de jornais, revistas, periódicos e penny bloods voltados para o

entretenimento da classe trabalhadora e um dos pioneiros da produção editorial na Inglaterra.

Quando jovem, trabalhou em um escritório de advocacia e estudou estenografia no Mechanics

186 Um dos candidatos mais populares ao posto de “Sweeney Todd da vida real” é Sawney Bean, um escocês

cuja família inteira alegadamente tinha o hábito de comer carne humana. Para mais detalhes, ver MACK, p.

174-175.

187 “[It is the] cautionary folktale told by a rural narrator to a rustic audience about the alien city that quite

literally

,

and Humor”, 1999), que discorrem sobre a relação entre horror e

humor, serão cruciais para a fundamentação da análise dessa penny blood. Além disso, sendo

Imagination: Balzac, Henry James, Melodrama, and the Mode of Excess. New Haven: Yale University Press,

1996, p. 19.

3 The String of Pearls se encontra disponível online no site Victorian London

e também possui edições impressas

recentes.

16

as penny bloods narrativas de horror, não se pode dispensar certos conceitos psicanalíticos

que se fazem pertinentes para melhor compreensão do gênero, principalmente aqueles

formulados por Sigmund Freud em trabalhos como “O Estranho” (1919), “O mal-estar na

civilização” (1929) e “Totem e Tabu” (1913), que oferecem perspectivas interessantes acerca

do conflito entre o primitivo e o civilizado – um dos temas do gótico urbano – na nova ordem

social que se estabeleceu na era vitoriana, e por Julia Kristeva (Powers of Horror: An Essay

on Abjection, 1982), sobre a sensação de horror e de aversão.

17

CAPÍTULO 1

Penny Bloods: definição, história e trajetória

Figura 1. Charge de “‘Parties’ for the Gallows”, Punch (Junho, 1845).

Em uma palestra realizada no dia 14 de outubro de 2013 em Londres pela The

Reading Agency, uma organização de incentivo à leitura, Neil Gaiman, escritor britânico,

discorreu sobre a importância da leitura. Dentre os diversos tópicos relacionados ao tema, ele

destacou a função das bibliotecas como cultivadoras do hábito de ler, a responsabilidade dos

cidadãos de exercerem tal atividade como parte da formação do indivíduo e da valorização do

conhecimento, e a necessidade de ler ficção. De acordo com ele,

A ficção tem dois usos. Primeiro, ela é uma porta de entrada à leitura. O desejo de

saber o que vem depois, virar a página, a necessidade de continuar, mesmo que seja

difícil, porque alguém está com problemas e você precisa saber como tudo vai

terminar... esse é um desejo muito real. E isso te impele a aprender palavras novas,

18

ter pensamentos novos, prosseguir. Descobrir que ler por si só é prazeroso. Uma vez

que aprenda isso, você está a um passo para ler tudo. E ler é fundamental. […]

E a segunda coisa que a ficção faz é criar empatia. Quando você assiste à TV ou a

um filme, está vendo coisas acontecendo com outras pessoas. A ficção em prosa é

algo que se constrói com 26 letras e um punhado de sinais de pontuação, e você,

sozinho, usando sua imaginação, cria um mundo, povoa-o, olha para ele com outros

olhos. Você consegue sentir coisas, visitar lugares e mundos que nunca conheceria

de outra forma. Você aprende que todo mundo ali é um eu também. Você está sendo

outra pessoa e, quando voltar para o seu próprio mundo, estará ligeiramente

mudado.4

Sendo um autor de ficção que escreve tanto para o público adulto quanto para o

infantil, Gaiman ressalta que os adultos têm participação significativa no despertar de

interesse das crianças pela leitura, mas que devem deixá-las lerem livros de que elas gostem,

sem censuras ou imposição de gostos pessoais. Para ele, não há livros, autores ou gêneros

ruins para crianças, e persistir nessa ideia pode ter um efeito contrário ao desejado:

Adultos bem intencionados podem destruir o amor de uma criança pela leitura:

proíba-a de ler o que ela gosta ou dê-lhe um livro digno porém sem graça do qual

você gosta, os equivalentes do século XXI à literatura “edificante” da era vitoriana.

Você terá uma geração convencida de que ler é chato e, pior, desagradável.5

O discurso de Gaiman como um todo, inserido como está no escopo do trabalho

realizado por instituições como a The Reading Agency, é bastante representativo das questões

que ainda hoje se fazem pertinentes acerca da leitura. A sociedade contemporânea atribui um

grande valor educativo e cultural à atividade: ler significa não só adquirir conhecimento e

desenvolver senso crítico, mas também deixar a imaginação fluir e se permitir um prazer; e

para leitores assíduos, ler assume uma função ainda mais importante, que é a prática do

cultivo de si. Entretanto, existem certas preocupações com o futuro e o “uso” que se faz da

4 “Fiction has two uses. Firstly, it’s a gateway drug to reading. The drive to know what happens next, to want to

turn the page, the need to keep going, even if it’s hard, because someone’s in trouble and you have to know

how it’s all going to end... that’s a very real drive. And it forces you to learn new words, to think new thoughts,

to keep going. To discover that reading per se is pleasurable. Once you learn that, you’re on the road to reading

everything. And reading is key. [...]

And the second thing fiction does is to build empathy. When you watch TV or see a film, you are looking at

things happening to other people. Prose fiction is something you build up from 26 letters and a handful of

punctuation marks, and you, and you alone, using your imagination, create a world, and people it and look out

through other eyes. You get to feel things, visit places and worlds you would never otherwise know. You learn

that everyone else out there is a me, as well. You’re being someone else, and when you return to your own

world, you’re going to be slightly changed.” GAIMAN, Neil. Neil Gaiman lecture in full: Reading and

obligation. Palestra originalmente realizada em 14 de outubro de 2013 pela The Reading Agency. Disponível

em: . Acesso em: 05 de março de

2014. Essa e todas as traduções contidas nesta dissertação são de minha responsabilidade.

5 “Well-meaning adults can easily destroy a child’s love of reading: stop them reading what they enjoy, or give

them worthy-but-dull books that you like, the 21st century equivalents of Victorian ‘improving’ literature.

You’ll wind up with a generation convinced that reading is uncool and worse, unpleasant.” Ibidem.

19

leitura. Muitas pessoas acreditam que o hábito esteja se perdendo por conta da variedade de

“distrações tecnológicas” que nos cerca. Outras, por sua vez, lamentam a qualidade de

conteúdo de certos livros, sobretudo de ficção, criticando o escapismo proporcionado por eles

ou simplesmente rotulando-os como literatura de mau gosto. A suposição de que o prestígio

atual da literatura estaria ameaçado pela circulação de livros “ruins” revela um grande

anacronismo, uma vez que se reproduz numa época em que a ficção ocupa um espaço enorme

na cultura (não só através de livros, mas também de filmes, peças de teatro e jogos

eletrônicos), e representa uma visão vitoriana de que a literatura “boa” é necessariamente

“edificante”, conforme sugerido por Gaiman.

Polêmicas à parte, a leitura de ficção hoje é vista como uma atividade corriqueira e

até mesmo benéfica para a imaginação, mas ela já foi considerada um hábito prejudicial ao

bom senso dos leitores em um passado não muito distante na Inglaterra. Essa ideia ganhou

muita força da metade do século XVIII até as primeiras décadas do século XIX, período em

que o romance se consolidou como forma literária, e surgiu como uma reação hostil à própria

configuração do gênero: não sendo clássico, nem poesia e nem história, o romance não podia

ser considerado uma forma legítima de discurso;6 não sendo visto como uma fonte de

instrução, ele foi reduzido a um entretenimento frívolo e deteriorante, pois, acreditava-se,

distorcia a realidade e feria valores morais com seu retrato exageradamente sentimental da

vida, formando, assim, leitores iludidos e distraídos.7

À medida que se popularizava, o romance assimilou temas e estilos diversos,

ramificando-se

,

consumes those foolish or gullible enough to fall victim to its allures […]”. Ibidem, p. 66. Isso não

quer dizer necessariamente que a lenda tenha se originado no campo, mas que ela se assemelha a um conto

admonitório que se apropria das fantasias em torno da cidade criadas tanto no contexto rural quanto no urbano.

105

Institute em Chancery Lane antes de abrir uma banca de jornal em Shoreditch. Sua carreira

como editor começou na década de 1830, quando lançou títulos como Weekly Penny Comic

Magazine, or Repertory of Wit and Humour (1832), The History and Lives of the Most

Notorious Highwaymen, Footpads and Murderers (1836) e The History of Pirates, Smugglers

Etc. of All Nations (1836), além de plágios de obras de Charles Dickens, como The Sketch

Book, by ‘Bos’ (1837), Memoirs of Nickelas Nicklebery (1838), The Life and Adventures of

Oliver Twiss the Workhouse Boy (1838-1839), Martin Guzzlewit e The Penny Pickwick

(1837-1839), os quais lhe garantiram sucesso. Mas foi na década seguinte, já estabelecido no

número 12 da Salisbury Square, próximo à Rua Fleet, que seu negócio prosperou: com a

instalação de duas impressoras a vapor, Lloyd pôde publicar um volume enorme de

periódicos, tais como Lloyd’s Weekly London Newspaper, Lloyd’s Penny Weekly Miscellany

(1843-1846), Lloyd’s Penny Atlas and Weekly Register of Novel Entertainment (1842-1845),

o próprio The People’s Periodical and Family Library e outros, nos quais várias narrativas de

crimes e de horror gótico foram serializadas. Ele também introduziu na Inglaterra algumas

técnicas de impressão e de edição que contribuíram muito para o desenvolvimento da

imprensa britânica, tais como a impressora rotativa a vapor inventada pelo americano Richard

March Hoe e a impressora offset. Lloyd foi um dos poucos empreendedores de seu ramo que

conseguiu ficar rico: quando morreu, aos setenta e cinco anos, deixou uma fortuna calculada

em £565,000.188

Apesar de ter editado a maioria de seus periódicos, Lloyd não era o autor das

histórias contidas neles: na verdade, ele empregava um pequeno grupo de hack writers

incrivelmente prolíficos, cujos nomes eram raramente divulgados, para dar conta de tantas

séries. Voltando para a primeira página de The String of Pearls mostrada no início deste

capítulo, constata-se que, de fato, não há outro nome ao qual se possa creditar a obra que não

seja o de Edward Lloyd. Sendo assim, quem, afinal, escreveu The String of Pearls? Essa

pergunta permanece sem uma resposta conclusiva até hoje. Entretanto, é possível apontar dois

membros da “Salisbury Square School”, como ficou conhecida a equipe de escritores

contratados por Lloyd, como fortes candidatos à autoria dessa penny blood.

Um deles se chamava Thomas Peckett Prest189 (1810-1859). Antes de se associar à

empresa de Lloyd em 1836, trabalhou como compositor, apresentando-se em clubes e salões

de música em Londres, e também como escritor e editor de periódicos de curta duração. Ao

final da mesma década, começou a escrever melodramas para o teatro. Seus primeiros

188 KIRKPATRICK, op. cit., pp. 69-71.

189 Algumas fontes usam a grafia Preskett.

106

trabalhos publicados por Lloyd consistiam basicamente nos já mencionados pastiches de

Dickens; depois, passou a escrever séries mais originais, muitas delas carregando seu nome,

tais como Ela, the Outcast; or, The Gipsy of Rosemary Dell (1839-1840), The Death Ship; or,

The Pirate’s Bride and the Maniac of the Deep (1846), Grace Walton; or, The Wanderers of

the Heath (1857), entre outros. Ao todo, produziu cerca de setenta penny bloods sob a edição

de Lloyd, todas lançadas com frequência semanal – em um determinado período de sua

carreira, Prest chegou a escrever partes de cinco histórias diferentes por semana. Nos anos de

1850, porém, seu rendimento começou a declinar por causa de sua tuberculose, que vinha

piorando, até que morreu aos quarenta e nove anos em sua casa, sem dinheiro algum.190

O outro era James Malcolm Rymer (1814-1884), um engenheiro civil que

posteriormente se dedicou à ficção depois de Lloyd ter publicado sua série intitulada Adeline;

or, The Grave of the Forsaken (1842). É possível que também tenha trabalhado como

ilustrador antes de começar a escrever. Ao contrário de certos escritores que procuravam ter

algum reconhecimento pelo seu trabalho, Rymer nunca assinava suas obras com seu

verdadeiro nome: ou utilizava pseudônimos diversos, tais como M. J. Errym, Malcolm J.

Merry e Captain Merry USN (que eram anagramas de seu próprio nome), e outros mais

variados, como Nelson Percival, Septimus R. Urban, J.D. Conroy, Marianne Blimber e Bertha

Thorne Bishop, ou escrevia anonimamente. De acordo com um de seus contemporâneos,

Thomas Catling, Rymer era capaz de trabalhar em dez séries diferentes ao mesmo tempo;

escreveu cerca de cinquenta e cinco penny bloods enquanto trabalhava para Lloyd e,

possivelmente, mais de cento e vinte durante toda a sua carreira, incluindo Ada, the Betrayed;

or, Murder at the Old Smithy (1842), The First False Step; or, The Path to Crime (1845), e

muitas outras. Morreu aos setenta anos em decorrência de complicações renais, tendo levado

uma vida relativamente confortável em termos financeiros.191

Algumas edições de The String of Pearls disponíveis atualmente carregam o nome de

Prest como o autor, enquanto outras indicam Rymer. A discussão permanente sobre qual deles

foi o verdadeiro autor dessa obra, no entanto, se deve a questões mais problemáticas: em

primeiro lugar, escrever penny bloods era uma atividade extremamente informal, no sentido

de que não importava muito quem escrevia as histórias, contanto que elas fossem

efetivamente escritas e que os escritores fossem pagos para isso, o que tornava questões

relacionadas a direitos autorais praticamente irrelevantes; em segundo lugar, os dados

190 Para mais detalhes sobre a vida de Prest, ver KIRKPATRICK, op. cit., p. 20, e também MACK, op. cit., pp.

145-146.

191 KIRKPATRICK, op. cit., pp. 20-21; MACK, op. cit., p. 146.

107

coletados até agora sobre esse subgênero são passíveis de imprecisão; e, finalmente, o fato de

Prest e Rymer terem trabalhado para Lloyd na mesma época e produzido extensivamente

dificulta ainda mais a atribuição de autoria.

Em seu estudo bibliográfico sobre as penny bloods publicadas por Edward Lloyd

realizado em 2002, Helen R. Smith, uma das principais participantes dessa discussão, recorre

a uma análise minuciosa dos anúncios feitos por Lloyd e dos respectivos estilos de Thomas

Peckett Prest e James Malcolm Rymer para realocar a autoria de The String of Pearls para seu

devido “criador”. De acordo com ela, Lloyd costumava promover suas séries listando outros

títulos de sucesso atribuídos aos autores como uma forma de garantir a qualidade delas; assim,

Prest era reconhecido como “o autor de Ela”, e Rymer, como “o autor de Ada”.192 Sobre os

padrões estilísticos de cada um deles, ela diz que “a linguagem de Rymer é um pouco mais

contida do que o rebuscado estilo melodramático que Prest preferia” (este, por exemplo, usava

palavras como “exclamar”, “ejacular” e “vociferar”, enquanto o outro preferia simplesmente

“gritar”), e complementa que Rymer tinha talento para elaborar temas macabros e

mórbidos;193 Prest, por sua vez, devido à sua ligação com a música e o teatro, tinha o hábito

de reciclar materiais antigos e transformar suas penny bloods em peças e vice-versa, e por

isso, talvez, sua imaginação era menos poderosa que a de seu colega.194 Para Smith, portanto,

é quase certo que Rymer tenha sido a mente criativa por trás da história de Sweeney Todd,

pois afirma que “[a]o ler a primeira serialização de The String of Pearls em The People’s

Periodical and Family Library, 1846-47, o que imediatamente ocorre ao leitor é que, tendo

,

um tom bem mais prosaico, ela não parece ser uma obra de Prest.”195

Dick Collins parece julgar um tanto arbitrária a decisão tomada por Smith de apontar

Rymer como o verdadeiro autor da obra. Em seu relato detalhado de dados biográficos sobre

Prest, Rymer e Lloyd, ele argumenta que “[The String of Pearls], com sua prosa jocosa e

divertida e seu humor mórbido, é bem diferente de qualquer outro trabalho de [James

192 SMITH, Helen R. New Light on Sweeney Todd, Thomas Peckett Prest, James Malcolm Rymer and Elizabeth

Caroline Grey, pp. 3-4. Disponível em: . Acesso em: 07 de

agosto de 2014.

193 “Rymer’s language is a little more restrained than the highly coloured melodramatic style favoured by Prest.”

Ibidem, p. 9.

194 Ibidem, pp. 12-13.

195 “On reading The String of Pearls in its first serialization in The People’s Periodical and Family Library,

1846-47, one is immediately struck, with its more matter-of-fact tone, that it does not feel like a work by

Prest.” Ibidem, p. 11. Ao dizer “a primeira serialização de The String of Pearls”, Smith se refere ao fato de que

a obra foi publicada e serializada novamente em 1850 com o subtítulo A Sailor’s Gift, sendo essa uma versão

maior e menos original do que a de 1847.

108

Malcolm Rymer]”,196 mas ao mesmo tempo atenta para o fato de que, em 1839, Rymer e sua

família se mudaram para Clerkenwell, e lá havia um relojoeiro e joalheiro que trabalhava com

pérolas, uma mulher que fabricava cordões com cabelo humano e um sujeito chamado Samuel

Todd que fazia colares com as mesmas pérolas e os mesmos cordões, o que, em vez de mera

coincidência, pode ter sido uma influência para o enredo.197 Quanto a Prest, Collins diz

apenas que ele merece ser lembrado, não exatamente por possivelmente ter escrito a história

de Sweeney Todd, mas por ter levado a leitura às classes mais baixas através de suas obras,

mesmo as que não passavam de um plágio.198 Ele conclui, porém, que só se pode conjeturar

sobre a identidade do autor desconhecido de The String of Pearls, e resume o problema da

seguinte forma:

Lloyd aceitou e comprou a história de um desconhecido e a entregou a um escritor

de sua equipe, provavelmente Prest, para que fosse adaptada ao que Lloyd

considerava ser uma boa Penny Dreadful. Três anos depois, ele decidiu reeditá-la

sozinha e pediu a outra pessoa, provavelmente Rymer, para expandi-la enquanto as

pessoas continuassem comprando. E isso é tudo que podemos dizer sobre essa

questão. The String of Pearls permanece anônima até segunda ordem.199

Embora não tenha, aparentemente, adquirido tanta força entre os pesquisadores que

se dedicam ao personagem de Sweeney Todd ou ao subgênero penny blood, não se pode

descartar a hipótese de que The String of Pearls tenha sido escrita por Prest e Rymer

alternadamente, considerando o volume e o ritmo de trabalho que os hack writers em geral

tinham e, mais uma vez, a despreocupação quase generalizada com direitos autorais.

A falta de definição quanto à autoria da narrativa que introduziu Sweeney Todd ao

público corresponde, em certos aspectos, à incerteza quanto à origem do mito que o eternizou,

mencionada anteriormente. Contudo, parece não haver dúvidas de que o autor de The String

of Pearls transformou a lenda parisiense – à qual, aliás, ele se manteve bastante fiel – em um

conto tipicamente londrino, não só ao ambientá-lo na capital inglesa, mas principalmente ao

conferir a ele uma atmosfera bem urbana e uma cor local inconfundível. Para começar, o

196 “TSOP, with its jaunty, springy prose and ghoulish humour is quite unlike any of JMR’s other works.”

COLLINS, Dick. “The Pirates of Salisbury Square: Two Dreadful Writers and an Appalling Publisher”, p. 3.

Disponível em: . Acesso em: 08 de agosto de

2014.

197 COLLINS, op. cit., pp. 3-4.

198 Ibidem, p. 6.

199 “Lloyd accepted and bought a story from someone unknown, and gave it to a staff-writer, probably Prest, to

bring in line with Lloyd’s idea of a good Penny Dreadful. Three years later, he decided to reissue it on its own,

and asked someone else, probably Rymer, to expand it for as long as people kept buying it. And this is all we

can say on the matter. The String of Pearls remains anonymous until further notice.” COLLINS, Dick.

“Introduction”. In: The String of Pearls: The Original Tale of Sweeney Todd. Ware e Hertfordshire:

Wordsworth’s Classics, 2005, p. viii, apud MACK, op. cit., p. 148.

109

barbeiro passou a se chamar Sweeney Todd, um nome bem peculiar, mas ainda assim

inglês,200 e a pâtissière ficou conhecida como Sra. Lovett (seu primeiro nome é Margery);201 a

barbearia foi colocada na Rua Fleet, via onde grande parte da imprensa e do mercado editorial

britânicos se concentravam (portanto, uma referência ao “berço” das penny bloods), e a

pâtisserie em Bell Yard, Temple Bar; o cliente desaparecido era um marinheiro que acabara

de voltar da Índia trazendo consigo um precioso colar de pérolas e um cão chamado Hector; e,

de modo a compensar a morbidez da trama, dois jovens envolvidos em um romance

aparentemente fadado ao infortúnio e um grupo pouco convencional de “detetives” amadores

(que adota um plano de investigação menos convencional ainda) foram adicionados à

história.202

Os eventos narrados em The String of Pearls, que se estendem por trinta e nove

capítulos, se passam em 1785, quando Jorge III ainda reinava. Sweeney Todd mantém uma

barbearia simples e puramente funcional perto da igreja de St. Dunstan, na Rua Fleet. Ele

acabara de contratar Tobias Ragg, um menino meio assustado, como seu aprendiz. Em um dia

de garoa, um marinheiro, o Tenente Thornhill, acompanhado de um cão, chamado Hector,

chega a Londres com a triste missão de informar à jovem Johanna Oakley que seu noivo,

Mark Ingestrie, havia desaparecido em um naufrágio, e também de lhe entregar um colar de

pérolas imensamente valioso em nome do rapaz. Antes de procurá-la, o marinheiro para na

igreja de St. Dunstan para ver as horas no relógio quando lhe ocorre que deveria se barbear e

ficar mais apresentável para encontrar a moça. Ele então se dirige à barbearia de Sweeney

Todd e aproveita para lhe perguntar se ele conhece o Sr. Oakley, um fabricante de óculos que

mora em Londres; o barbeiro diz que o Sr. Oakley mora na Rua Fore e tem uma filha

chamada Johanna. Depois de mandar Tobias sair para comprar biscoitos e perguntar ao cliente

200 Em uma nota explicativa na edição de The String of Pearls que comentou e editou, Robert L. Mack afirma

que o nome Sweeney pode remeter a uma antiga lenda celta chamada Buile Suibhne, que narra a história de um

rei pagão – “Sweeney”, na versão irlandesa do nome – cujo temperamento colérico lhe rende uma maldição, e

que o sobrenome Todd, por sua vez, deriva de uma palavra do Inglês Médio que significa “raposa”, também

usada metaforicamente para se referir a uma pessoa ardilosa. Para mais detalhes, ver MACK, Robert L. (ed.).

Sweeney Todd: The Demon Barber of Fleet Street. New York: Oxford University Press, 2007a, p. 284.

201 De acordo com o site The Internet Surname Database, Lovett é um sobrenome de origem inglesa ou escocesa,

podendo significar “filhote de lobo”, um apelido anglo-normando, ou corresponder à junção das palavras

gaélicas para “apodrecer” e “lugar”. Para mais detalhes, ver: .

Acesso em: 09 de agosto de 2014.

202 Esses elementos pouco convencionais da trama, que se apresentam como peripécias bastante improváveis,

contribuem para a caracterização dessa obra como um romance um tanto quanto fantasioso em comparação

com um romance mais comprometido com a verossimilhança (daí a diferença

,

em inglês entre as palavras

romance e novel). Quanto a isso, Mack afirma: “The appeal of The String of Pearls as a ‘romance’, therefore,

was intended to lie in the ‘ideality of incident’ in its representation of characters and events that were somehow

set apart from the diurnal and mundane provenance of ‘realism’ […]”. MACK, The Wonderful and Surprising

History of Sweeney Todd, p. 106.

110

o que ele fazia em Londres – Thornhill responde que acabara de voltar da Índia –, Sweeney

Todd procede:

– É mesmo? Onde meu afiador de navalhas pode estar? Ele estava aqui neste

minuto; devo tê-lo deixado cair em algum lugar. Que estranho não vê-lo por aqui!

Muito esquisito; o que será que aconteceu? Oh, eu me lembro, eu o levei para a sala.

Fique aí sentado, senhor. Não vou demorar; fique aí, senhor, por favor. Enquanto

isso, pode se distrair um pouco com o Courier, senhor, por um momento.

Sweeney Todd foi até a sala dos fundos e fechou a porta. Houve um som estranho

seguido de repente de um arrastão e um baque pesado, imediatamente depois do qual

Sweeney Todd saiu da sala, e, cruzando os braços, olhou para a cadeira vazia onde

seu cliente estivera sentado, mas este havia sumido, sem deixar o menor sinal de sua

presença, exceto pelo seu chapéu, que Sweeney Todd pegou imediatamente e jogou

dentro de um armário no canto da barbearia.203

Tobias chega da rua logo depois, para a desconfiança do barbeiro, e vendo que

Thornhill não estava mais lá, acha curioso que Hector continue esperando do lado de fora e

não tenha ido embora junto com seu dono. Ao ver Todd, Hector força sua entrada na

barbearia e o ataca; o barbeiro cai contra o armário, que acaba se abrindo e revelando o

chapéu do marinheiro, e o cão sai da barbearia em disparada com o chapéu na boca. Tobias

diz ao patrão que havia passado por Thornill na rua e o ouviu dizer algo sobre Mark Ingestrie

estar morto e Johanna Oakley ganhar um colar de pérolas. Logo em seguida, outro cliente

entra na barbearia – justamente o tio de Mark Ingestrie, o Sr. Grant, que comenta por alto que

há muito tempo não tem notícias de seu sobrinho. Ao ouvir isso, Sweeney Todd parece

vislumbrar uma ótima oportunidade de lucrar.

A demora de Thornhill em voltar para o navio começa a preocupar a tripulação,

principalmente depois que Hector aparece, exausto, trazendo o chapéu de seu dono na boca.

Percebendo que o animal estava bastante aflito, Coronel Jeffrey, que estava a bordo, desconfia

que algo tenha acontecido e decide investigar o paradeiro do tenente. Hector o leva até

Sweeney Todd, que, ao ser indagado pelo coronel, confirma ter atendido um cliente que

poderia ser Thornhill, mas afirma que o homem saiu apressado para ir à casa do Sr. Oakley. O

cão insiste em ficar de guarda na porta da barbearia, o que eleva as suspeitas do Coronel

203 “‘Indeed! where can my strop be? I had it this minute; I must have laid it down somewhere. What an odd

thing that I can’t see it! It’s very extraordinary; what can have become of it? Oh, I recollect, I took it into the

parlour. Sit still, sir. I shall not be gone a moment; sit still, sir, if you please. By the by, you can amuse yourself

with the Courier, sir, for a moment.’

Sweeney Todd walked into the back parlour and closed the door. There was a strange sound suddenly

compounded of a rushing noise and then a heavy blow, immediately after which Sweeney Todd emerged from

his parlour, and, folding his arms, he looked upon the vacant chair where his customer had been seated, but the

customer was gone, leaving not the slightest trace of his presence behind except his hat, and that Sweeney

Todd immediately seized and thrust into a cupboard that was at the corner of the shop.” PREST, Thomas

Preskett [1846-7]. The String of Pearls: A Romance. London: Penguin Books, 2010, p. 8.

111

Jeffrey; vendo que não conseguiria obter mais informações do barbeiro, ele decide procurar

Johanna e lhe contar sobre o destino de Mark Ingestrie e o desaparecimento do Tenente

Thornhill.

Não muito longe da Rua Fleet, funciona a pâtisserie da Sra. Lovett, um lugar famoso

não só entre londrinos de todas as classes, mas também pessoas vindas de longe, por conta de

suas tortas de carne de “porco” e de “vitela”, que eram consideradas iguarias espetaculares. É

também um ponto de encontro muito procurado pelos “homens da lei” – que compreendiam

advogados e outros funcionários do tribunal – vindos de Temple Bar, que se reúnem para

conversar ou se atualizarem sobre os acontecimentos mais recentes. A produção de tortas

parece não parar, pois a loja está sempre cheia delas – e, consequentemente, lotada de clientes

ávidos por uma refeição boa e barata. Não é preciso dizer que o estabelecimento gerido pela

Sra. Lovett é bastante lucrativo.

Numa certa ocasião, à noite, Sweeney Todd vai à loja de um conhecido lapidário em

Londres com o intuito de vender um colar de pérolas. Imaginando que a joia seja apenas uma

falsificação, o homem se mostra um tanto relutante em receber um cliente tão tarde, mas ao

examinar as pérolas, para sua surpresa, reconhece que elas são reais. Antes de negociar,

porém, ele exige que Todd lhe dê satisfações de como havia obtido o colar. Sem dizer uma

palavra sobre a origem das pérolas, o barbeiro se prepara para sair da loja quando o lapidário

grita “Pega ladrão! Pega!”. Todd então começa a correr o mais rápido que pode, com toda a

vizinhança atrás dele, e acaba se refugiando em um covil; lá, entretanto, lhe fazem a mesma

pergunta quando ele menciona que estava de posse de um colar de pérolas, e dispara em mais

uma fuga.

Dias depois, um sujeito miserável aparece na pâtisserie e pergunta à Sra. Lovett se

ela poderia lhe arranjar um emprego. Seu nome é Jarvis Williams e, aparentemente, havia

perdido todas as suas posses. A pâtissière responde que só poderia contratá-lo como

cozinheiro e que a vaga já estava preenchida; no entanto, diz para ele voltar dali a duas horas.

Nesse meio-tempo, o cozinheiro é “dispensado” (por um carrasco); e Williams, admitido. A

Sra. Lovett o adverte que ele não será pago e que viverá no porão da loja, onde ficam as

prateleiras abastecidas de recheio e o forno, mas que poderá comer tortas à vontade.

Enquanto isso, o grupo de investigadores composto pelo Coronel Jeffrey, o Capitão

Rathbone (um conhecido do coronel em Londres) e Johanna continua atrás de pistas sobre os

paradeiros de Thornhill e Mark Ingestrie. Os cavalheiros já haviam tentado entrar na barbearia

disfarçados de comerciantes de joias para procurar algum tipo de evidência relacionada ao

desaparecimento do tenente, mas Sweeney Todd não se deixou enganar tão facilmente pela

112

estratégia e deixou que eles a executassem até o fim. Tobias também desconfia de que seu

patrão esteja exercendo alguma atividade escusa, e, aproveitando a ausência dele, começa a

vasculhar a barbearia e o apartamento superior. Dentro de um armário que permanece

trancado, ele encontra um grande número de objetos pessoais, tais como bengalas, chapéus,

guarda-chuvas, relógios, correntes de ouro e broches, e se pergunta de que outra forma o

barbeiro teria obtido tudo aquilo a não ser assassinando seus clientes. Para azar do menino,

Todd percebe que ele mexeu no armário, e, antes que seja acusado de qualquer crime, interna

Tobias no manicômio de um tal Sr. Fogg, em Peckham Rye. No dia seguinte, Todd anuncia

uma vaga para aprendiz na janela da barbearia. Determinada a descobrir que fim Thornhill

havia levado, Johanna resolve se vestir com roupas masculinas e se candidatar a aprendiz do

barbeiro; dessa vez, ele não suspeita de nada, e a contrata.

Passado algum tempo, um fedor horrível começa a vir da igreja de St. Dunstan – tão

forte que o pároco e os fiéis espirram e prendem a respiração com frequência durante os

sermões. Parece pouco provável que o cheiro de morte

,

venha das criptas do edifício, uma vez

que não vinham sendo utilizadas há muitos anos. Quando a situação chega a um nível

insuportável, as autoridades locais decidem fazer uma inspeção no lugar e descobrem que as

criptas foram reabertas:

Havia uma quietude mortal no lugar, e os poucos caixões prestes a se desintegrarem

localizados em nichos nas paredes eram, assim como seus residentes, evidentemente

muito antigos para exalarem aquele cheiro repugnante de animal em decomposição

que empesteava o lugar.

– Você verá, Sir Richard – disse o sacristão, mostrando um pedaço de papel

–, que, de acordo com a planta da cripta que eu tenho aqui, esta se abre em uma

passagem que dá meia volta na igreja, e dessa passagem se abrem um número de

criptas, nenhuma delas tendo sido usada há muito tempo.

– Vejo que a porta está aberta.

– Sim, está mesmo. Não é estranho, Sir Richard? Oh, Deus, ponha só sua

cabeça dentro da passagem e veja se não vai sentir o cheiro agora!

Todos fizeram a experiência e concluíram, de fato, que o cheiro era horrível. Sir

Richard pegou uma tocha de um dos oficiais e seguiu pela passagem. Ele não

conseguia ver nada além das portas de algumas das criptas abertas: cruzou o limiar

de uma delas e se afastou por um minuto, depois do qual retornou, dizendo:

– Acho que nos deteremos aqui agora: vimos o suficiente para nos

convencermos de tudo.

– De tudo, senhor! – disse o sacristão, – Tudo o quê?

– Exatamente, isso basta. Sigam-me, cavalheiros.

Os oficiais, sem nenhum questionamento ou comentário, seguiram Sir Richard, que

começou a subir a escada de pedra rapidamente, com eles em seus calcanhares, de

volta à igreja.204

204 “There was a death-like stillness in the place, and the few crumbling coffins which were in niches in the walls

were, with their tenants, evidently too old to give forth that frightful odour of animal decomposition which

pervaded the place.

113

Figuras 9 e 10. Ilustrações de The String of Pearls: or, The Sailor’s Gift, uma edição mais longa de The String of

Pearls lançada por Edward Lloyd em 1850.

Sir Richard, juiz a quem o Coronel Jeffrey havia comunicado suas suspeitas sobre

Sweeney Todd, descobre que há uma estranha ligação entre o desaparecimento do Tenente

Thornhill e a reabertura das criptas, e que o fedor proveniente delas só poderia ser de

cadáveres que haviam começado a se decompor recentemente. Chocado com suas próprias

conclusões, e sabendo da situação em que Johanna havia se metido, o juiz decide ir até a

barbearia para solucionar de vez o mistério. Aproveitando que a moça – disfarçada de Charley

Green, o novo aprendiz do barbeiro – estava sozinha, Sir Richard, por meio de um bilhete, lhe

dá algumas instruções de como proceder caso se encontre em perigo; enquanto isso, ele

planeja uma ação para flagrar Sweeney Todd no ato de despachar o cliente da vez.

‘You will see, Sir Richard,’ said the churchwarden, producing a piece of paper, ‘that, according to the plans of

the vault I have here, this one opens into a passage that runs halfway round the church, and from that passage

opens a number of vaults, not one of which has been used for years past.’

‘I see the door is open.’

‘Yes, it is as you say. That’s odd, Sir Richard, ain’t it? Oh! gracious! just put your head out into the passage,

and won’t you smell it then!’

They all tried the experiment, and found, indeed, that the smell was horrible. Sir Richard took a torch from one

of the constables, and advanced into the passage. He could see nothing but the doors of some of the vaults

open: he crossed the threshold of one of them, and was away about a minute; after which he came back, saying,

‘I think we will all retire now: we have seen enough to convince us all about it.’

‘All about it, sir!’ said the churchwarden, ‘what about it?’

‘Exactly, that will do – follow me, my men.’

The officers, without the slightest questions or remarks, followed Sir Richard, and he began rapidly, with them

at his heels, to ascend the stone staircase into the church again.” PREST, op. cit., pp. 332-333.

114

Ansiosa para encontrar alguma coisa que incriminasse o barbeiro, Johanna vasculha

a barbearia e quase entra na sala dos fundos, mas se detém por medo de que ele apareça de

repente. Assim que retorna, Sweeney Todd começa a atender um cliente e pede ao seu

aprendiz que traga água quente e uma navalha; ao lhe dar o instrumento, porém, Johanna

acidentalmente bate no braço da cadeira de barbear com a lâmina e acaba cortando um pedaço

da madeira. Da mesma forma que fez com o Tenente Thornhill, o barbeiro pede que Charley

vá à rua fazer uma tarefa; quando ele (isto é, ela) volta, vê que o cliente não está mais lá, mas

que seu chapéu havia sido guardado no armário. Johanna se senta na cadeira de barbear por

um momento para se acalmar um pouco, e percebe que o braço no qual havia feito o talho está

novo em folha.

Mais tarde, Sweeney Todd recebe um estranho bilhete da Sra. Lovett, que diz o

seguinte:

O novo cozinheiro já está cansado de sua situação, e você deve abrir uma nova

vaga hoje à noite. Ele é o mais inconveniente que eu já tive, porque é o mais

educado. Ele deve ser tirado daqui – você sabe como. Estou certa de que ele trará

problemas.205

Um pouco antes da hora indicada, Todd sai e avisa a Charley que se ausentará por não mais

de uma hora. Tão logo Johanna se encontra sozinha, Sir Richard chega, se identifica e

esconde dois de seus oficiais dentro do armário. Ele informa à moça que voltará para fazer a

barba quando Sweeney Todd estiver na barbearia. Enquanto isso, o barbeiro vai até a

pâtisserie para tratar de assuntos urgentes com a Sra. Lovett – essa é, na verdade, a única vez

que os dois aparecem juntos. Agitada e impaciente, ela reclama que ele fica com a maior parte

dos lucros (do negócio que eles obviamente mantêm em segredo) enquanto ela mesma corre

vários riscos sozinha; sua raiva é tão grande que ela cai em uma cadeira e diz que precisa

beber um pouco de conhaque antes que enlouqueça. Para acabar com a discussão, Todd

garante que ela receberá uma quota bastante satisfatória no dia seguinte, mas assim que a

pâtissière vira as costas para atender um cliente no balcão, ele esvazia um frasco de veneno

dentro da garrafa de conhaque.

Ao voltar para a barbearia, Sweeney Todd recebe um cliente de última hora – que é,

na verdade, Sir Richard. Fingindo ser um fazendeiro, ele diz que havia acabado de vender um

grande número de cabeças de gado e conseguido bastante dinheiro. Charley sai a mando de

205 “The new cook is already tired of his place, and you must tonight make another vacancy. He is the most

troublesome one I have had, because the most educated. He must be got rid of – you know how. I am certain

mischief will come of it.” PREST, op. cit., p. 346.

115

seu patrão, mas fica escondido do lado de fora da barbearia. Quando o barbeiro se vira em

direção à sala dos fundos, Sir Richard se levanta silenciosamente da cadeira e aguarda perto

da janela; ouve-se o som de uma alavanca pesada sendo puxada, e então o juiz descobre com

que engenho o vilão sumia com seus clientes: a cadeira de barbear era firmemente parafusada

a um alçapão no chão que, ao ser aberto pelo acionamento da alavanca, girava para baixo e

revelava uma outra cadeira idêntica àquela que havia descido. Ao ver que seu cliente ainda

está lá, vivo, de pé e cheio de espuma no rosto, Sweeney Todd solta um grito de horror,

acreditando que o morto havia retornado para puni-lo.

Já é noite, mas a pâtisserie está lotada de clientes. Como de costume, as tortas

chegam em uma plataforma

,

que sobe para a loja e desce até a cozinha através de cordas

puxadas pela manivela atrás do balcão. A Sra. Lovett traz a última fornada do dia quando se

surpreende com algo, no mínimo, extraordinário:

[...] no momento em que a Sra. Lovett parou de girar a manivela e deixou o trinco

cair para impedir que a plataforma se movesse novamente, para o espanto e o terror

de todos, as tortas, a bandeja e tudo mais voaram por cima do balcão, e um homem,

que se encontrava abaixado e bem achatado sob a bandeja, levantou-se em um pulo.

A Sra. Lovett soltou um grito, como era de se esperar, e permaneceu de pé,

tremendo e ficando tão pálida quanto a própria morte. Era o cozinheiro condenado

no porão, que havia escolhido esse modo para escapar.

A multidão dentro da loja parecia petrificada, e depois do grito da Sra. Lovett, houve

um silêncio terrível por um minuto, e então o jovem que trabalhava como cozinheiro

falou.

– Senhoras e senhores, receio que o que estou prestes a dizer estragará o apetite de

todos; mas a verdade é sempre bela, e eu devo afirmar que as tortas da Sra. Lovett

são feitas de carne humana!206

Finalmente, todos os mistérios e reviravoltas da trama são solucionados: o Tenente

Thornhill e outros diversos clientes que morriam pelas mãos de Sweeney Todd eram

transformados em tortas de carne pelas mãos da Sra. Lovett (ou, mais precisamente, pelo

pobre cozinheiro aprisionado no porão) depois que o barbeiro se apropriava do dinheiro e dos

objetos de valor que estavam com eles e depositava suas carcaças nas criptas da igreja; Mark

Ingestrie estava vivo o tempo todo e era nada mais nada menos que Jarvis Williams; Tobias

206 “[…] and the moment Mrs Lovett ceased turning the handle, and let a catch fall that prevented the platform

receding again, to the astonishment and terror of everyone, away flew all the pies, tray and all, across the

counter, and a man, who was lying crouched down in an exceedingly flat state under the tray, sprang to his

feet.

Mrs Lovett shrieked, as well she might, and then she stood trembling, and looking as pale as death itself. It was

the doomed cook from the cellars, who had adopted this mode of escape.

The throngs of persons in the shop looked petrified, and after Mrs Lovett’s shriek, there was an awful stillness

for about a minute, and then the young man who officiated as cook spoke.

‘Ladies and gentlemen – I fear that what I am going to say will spoil your appetites; but the truth is beautiful at

all times, and I have to state that Mrs Lovett’s pies are made of human flesh!’” PREST, op. cit., pp. 375-376.

116

conseguiu escapar do manicômio; a Sra. Lovett acabou morrendo na hora em que foi

capturada, por conta do veneno; e Sweeney Todd foi enviado para Newgate e lá permaneceu

até ser executado na forca.

Foi através de um enredo típico da ficção de massa vitoriana, incluindo assassinos

em série, o submundo do crime e uma revelação literalmente difícil de digerir, que Sweeney

Todd deixou de pertencer a uma lenda urbana francesa para ser integrado à vida londrina

como um personagem lendário da cultura e literatura popular inglesa de maneira irreversível.

3.3 Do capitalismo ao canibalismo: perspectivas do gótico urbano

Conforme observado nos capítulos anteriores, a literatura vitoriana recebeu uma

grande influência do romance gótico do século XVIII, que se reflete principalmente na

tendência daquela a representar e evocar símbolos da tirania, da loucura e do mal em suas

diversas facetas. Na ficção de massa, especialmente no que concerne às penny bloods, esses

temas são propositalmente explorados com exagero, contribuindo ainda mais para o efeito do

horror que lhes é característico e conferindo a elas um tom inquietante. Contudo, o estilo

gótico adquiriu novas vertentes ao ser resgatado no século XIX, mesclando-se com o

momento da Revolução Industrial e do desenvolvimento das cidades e relacionando-se com o

presente da sociedade que retrata, motivo pelo qual passou a ser identificado como gótico

urbano.

Entretanto, o estilo não rejeita totalmente o passado, como se se opusesse às

idealizações dos ancestrais observadas no gótico tradicional, uma vez que, conforme

argumenta Robert Mighall, a ficção gótica da era vitoriana é “obcecada por identificar e

representar as lembranças ameaçadoras ou os vestígios escandalosos de uma era da qual o

presente se distanciou com alívio”,207 que podem ser encontrados nas prisões, nos

manicômios, nas favelas e também na mente dos criminosos e dos transgressores.208 Em The

String of Pearls, essa obsessão se torna clara pela inserção do ato de canibalismo em uma

sociedade organizada por fortes valores morais e um sistema capitalista em expansão,

estabelecendo, assim, um contraste gritante entre selvageria e civilização. Dessa forma, alguns

207 “[Victorian Gothic fiction] is obsessed with identifying and depicting the threatening reminders or scandalous

vestiges of an age from which the present is relieved to have distanced itself”. MIGHALL, Robert. A

Geography of Victorian Gothic Fiction: Mapping History’s Nightmare. Oxford: Oxford University, 1999, apud

PUNTER; BYRON, op. cit., p. 29.

208 PUNTER; BYRON, op. cit., p. 29.

117

aspectos e símbolos do gótico urbano identificados nessa obra serão analisados nos parágrafos

seguintes.

3.3.1 Os vilões: o civilizado, o primitivo, o monstro

Conforme explicitado anteriormente, o vilão do gótico urbano é, sobretudo,

contemporâneo: não é, necessariamente, uma figura representativa de uma classe ou

instituição, como os fora da lei e o clero, tampouco uma figura de outro mundo, como o

estrangeiro ou, ainda, alguma entidade sobrenatural; ele é simplesmente um cidadão comum

que transgride certas normas da sociedade em que vive. Sweeney Todd e a Sra. Lovett, por

exemplo, são retratados como dois trabalhadores independentes e bem-sucedidos, cujos

serviços e produtos são, em geral, tidos pelos clientes regulares como de ótima qualidade; o

“trabalho árduo” lhes confere um ar de respeitabilidade indispensável para a classe média

emergente. Entretanto, algumas pessoas têm motivos para acharem que isso não passa de

afetação, e embora não saibam de nada do que realmente se passa no interior de seus

respectivos estabelecimentos, veem no barbeiro e na pâtissière um perigo terrível; dessa

forma, ainda que se encontrem inseridos em uma comunidade tida como “normal”, os vilões

são percebidos por ela como figuras um tanto exóticas, especialmente pela maneira como se

portam socialmente. Nas primeiras páginas de The String of Pearls, Sweeney Todd é

apresentado ao leitor como se segue:

O barbeiro era um sujeito alto, desconjuntado e desproporcional, com uma boca

imensa e mãos e pés tão grandes que ele era, a seu modo, uma curiosidade natural; e,

o que era mais fabuloso, levando-se em conta seu ramo, é que jamais foi vista uma

cabeça tão cabeluda quanto a de Sweeney Todd. Não sabemos a quê compará-la:

provavelmente a algo próximo do que podemos supor ser um arbusto volumoso, no

qual uma certa quantidade de arame se emaranhou. De fato, era uma cabeleira

formidável; e como Sweeney Todd guardava todos os seus pentes nela – alguns

diziam que suas tesouras também –, quando punha sua cabeça fora da porta para ver

como o tempo estava, ele podia ser confundido com um índio guerreiro usando um

cocar extraordinário.

Ele tinha um tipo de risada curta, mal-humorada e desagradável, que vinha naqueles

momentos estranhos em que ninguém mais via absolutamente nada do que rir, e que

às vezes fazia as pessoas se assustarem de novo, especialmente quando elas estavam

sendo barbeadas, e Sweeney Todd parava a operação por um momento para uma de

suas risadas efusivas. Era evidente que a lembrança de alguma piada estranha e

indecente devia lhe ocorrer

,

ocasionalmente, e então ele dava sua risada de hiena, que

era tão curta, tão repentina, daquela que bate no ouvido por um momento e depois

vai embora, que as pessoas olhavam para o teto, para o chão e ao redor delas para

saber de onde ela havia saído, mal supondo ser possível que vinha de lábios mortais.

O Sr. Todd era um pouco vesgo, o que lhe dava ainda mais charme; [...] Alguns

achavam-no um sujeito descuidado porém inofensivo, sem muito senso, e às vezes

quase achavam que ele era meio maluco; mas havia outros, ainda, que sacudiam a

118

cabeça quando falavam dele; e embora não pudessem dizer nada contra ele, exceto

que eles certamente o consideravam esquisito, mesmo assim, quando pensavam que

grande crime e que falta é na verdade ser esquisito neste mundo, não nos

surpreenderemos com a aversão deles por Sweeney Todd.209

A aparência nada convidativa e os estranhos hábitos de Sweeney Todd certamente

assustam: a desproporcionalidade de seu corpo, a abundância e o desalinho de seus cabelos e

sua risada de hiena lhe dão um aspecto selvagem; as gargalhadas inesperadas sem motivo

aparente e a vesguice o fazem parecer louco; a fisionomia desconjuntada e o som bestial de

sua risada, portanto, compõem a esquisitice primitiva de Sweeney Todd, que sinaliza uma

natureza possivelmente hostil.210

A Sra. Lovett, por sua vez, não parece tão selvagem quanto seu parceiro; por ser

jovem, atraente e dotada de um talento culinário incomparável, ela chega a hipnotizar sua

clientela masculina, mas guarda um ar de maldade que não condiz com sua reputação. A

pâtissière é assim descrita:

[...] Havia uma Senhora Lovett; mas possivelmente nossos leitores já haviam

adivinhado, pois o que mais poderia ter se aventurado na produção daquelas tortas

senão as mãos de uma mulher robusta, jovem e atraente? Sim, a Sra. Lovett era tudo

isso; e todo jovem da lei apaixonado, enquanto devorava sua torta, deleitava-se com

a ideia de que a charmosa Sra. Lovett havia feito aquela torta especialmente para ele,

e que a sorte ou o destino a havia colocado em suas mãos.

E era surpreendente ver com que imparcialidade e com que tato a bela pâtissière

oferecia seu sorriso aos seus admiradores, de modo que nenhum deles poderia dizer

que fora negligenciado, embora fosse extremamente difícil para qualquer um dizer

que era o preferido.

209 “The barber himself was a long, low-jointed, ill-put-together sort of fellow, with an immense mouth, and such

huge hands and feet, that he was, in his way, quite a natural curiosity; and, what was more wonderful,

considering his trade, there never was seen such a head of hair as Sweeney Todd’s. We know not what to

compare it to: probably it came nearest to what one might suppose to be the appearance of a thickset hedge, in

which a quantity of small wire had got entangled. In truth, it was a most terrific head of hair; and as Sweeney

Todd kept all his combs in it – some said his scissors likewise – when he put his head out of the shop-door to

see what sort of weather it was, he might have been mistaken for some Indian warrior with a very remarkable

head-dress.

He had a short disagreeable kind of unmirthful laugh, which came in at all sorts of odd times when nobody else

saw anything to laugh at all, and which sometimes made people start again, especially when they were being

shaved, and Sweeney Todd would stop short in that operation to indulge in one of those cacchinatory effusions.

It was evident that the remembrance of some very strange and out-of-the-way joke must occasionally flit

across him, and then he gave his hyena-like laugh, but it was so short, so sudden, striking upon the ear for a

moment, and then gone, that people have been known to look up to the ceiling, and on the floor, and all around

them, to know from whence it had come, scarcely supposing it possible that it proceeded from mortal lips.

Mr Todd squinted a little to add to his charms; […]. Some thought him a careless enough harmless fellow, with

not much sense in him, and at times they almost considered he was a little cracked; but there were others,

again, who shook their heads when they spoke of him; and while they could say nothing to his prejudice,

except that they certainly considered he was odd, yet, when they came to consider what a great crime and

misdemeanour it really is in this world to be odd; we shall not be surprised at the ill-odour in which Sweeney

Todd was held.” PREST, op. cit., pp. 2-3.

210 MACK, The Wonderful and Surprising History of Sweeney Todd, p. 109.

119

[...] Mas havia outros, de mente mais filosófica, que só iam pelas tortas, e não se

importavam nem um pouco com a Sra. Lovett.

Estes afirmavam que seu sorriso era frio e desconfortável – que estava nos lábios,

mas que não vinha do coração [...]

Então havia alguns que iam além disso, e embora admitissem que as tortas eram

excelentes e que as comiam todos os dias, juravam que a Sra. Lovett tinha um

aspecto bem sinistro, e que eles podiam ver o quanto os agrados dela eram

meramente superficiais, e que havia “um demônio à espreita em seu olho” que, uma

vez provocado, seria capaz de realizar coisas graves, e poderia não ser tão facilmente

reprimido novamente.211

O perigo por trás da aparente integridade trazida pelo trabalho se deve

principalmente à avareza e à astúcia de Sweeney Todd e da Sra. Lovett, que os impelem a

fazer qualquer coisa para prosperarem em um lugar tão competitivo quanto Londres, o que

inclui formar uma sociedade que é ao mesmo tempo comercial – na qual ele presta serviços e

fornece matéria-prima a ela, que fabrica e vende o produto final – e criminosa – ele roubando

e executando as vítimas, e ela dispondo dos corpos subsequentemente sem deixar vestígios.

Com esse esquema atroz, eles visam acumular riquezas, dividir os lucros e usufruir de suas

respectivas parcelas um longe do outro, pois mesmo depois de agirem juntos por oito anos,

nunca estabeleceram uma relação amistosa.212

Nenhum dos dois, aliás, está disposto a permanecer em Londres após a dissolução de

seus negócios – Sweeney Todd pretende vender o colar de pérolas e recomeçar sua vida na

Holanda,213 enquanto a Sra. Lovett sonha em retornar a Paris.214 Embora isso seja obviamente

um plano para escapar da lei, deixar a cidade pode indicar uma tentativa de fugir da vida que

211 “[…] There was a Mistress Lovett; but possibly our readers guesses as much, for what but a female hand, and

that female buxom, young and good-looking, could have ventured upon the production of those pies. Yes, Mrs

Lovett was all that; and every enamoured young scion of the law, as he devoured his pie, pleased himself with

the idea that the charming Mrs Lovett had made that pie especially for him, and that fate or predestination had

placed it in his hands.

And it was astonishing to see with what impartiality and with what tact the fair pastry cook bestowed her

smiles upon her admirers, so that none could say he was neglected, while it was extremely difficult for anyone

to say he was preferred.

[…] But there were others again, of a more philosophic turn of mind, who went for the pies only, and did not

care one jot for Mrs Lovett.

These declared that her smile was cold and uncomfortable – that it was upon her lips, but had no place in her

heart […]

Then there were some who went even beyond this, and, while they admitted the excellence of the pies, and

went every day to partake of them, swore that Mrs Lovett had quite a sinister aspect, and that they could see

what a merely superficial affair her blandishments were, and that there was ‘a lurking devil in her eye’ that, if

once roused, would be capable of achieving some serious things, and might not be so easily quelled again.”

PREST, op. cit., pp. 37-38.

212 Em uma tentativa de acertar as contas com a Sra. Lovett,

,

Sweeney Todd diz: “I tell you your share of the last

eight years’ work shall be £20,000. You shall have the sum tomorrow, and then you are free to go where you

please; it matters not to me one straw where you spend your money.” Ibidem, pp. 354-355.

213 “[…] I will shut up shop sooner than I intended by far, and be off to the continent. Yes, my next sale of the

string of pearls shall be in Holland.” Ibidem, p. 345.

214 “You have been now for these six months providing me such a division of spoil as shall enable me, with an

ample independence, once again to appear in the salons of Paris.” Ibidem, p. 353.

120

esta lhes oferece, como se, por algum motivo, nenhum deles pertencesse à civilização da

capital inglesa. De fato, Mack atenta para a falta de pertencimento deles quando diz que

ambos são pessoas desajustadas e sozinhas:

Ambos são solitários e reclusos, ambos se escondem em habitações intrincadamente

compartimentadas e em ambientes de trabalho que revelam uma frieza e um vazio na

alma subjacentes, [...] ambos se veem indispostos, se não inaptos, a demonstrar

qualquer grau declarado ou normal de sexualidade ou mesmo de afeição.215

Nesse sentido, a agressividade do barbeiro e a frieza da pâtissière podem ser

interpretadas como uma reação negativa a um ambiente comprimido e pouco acolhedor e à

multidão desproporcionada que nele habita e que os sufoca de alguma forma. Quanto a isso,

Sigmund Freud, ao discutir os conflitos entre os instintos e as restrições impostas pela

civilização, afirma que os homens são “criaturas entre cujos dotes instintivos deve-se levar em

conta uma poderosa quota de agressividade”; como consequência, e apesar do senso de

comunidade e a consideração mútua entre as pessoas que a civilização exige, para eles, o seu

próximo é “alguém que os tenta a satisfazer sobre ele a sua agressividade, a explorar sua

capacidade de trabalho sem compensação, utilizá-lo sexualmente sem o seu consentimento,

apoderar-se de suas posses, humilhá-lo, causar-lhe sofrimento, torturá-lo e matá-lo”.216

Se, por um lado, a agressividade e a frieza são características primitivas do ser

humano, conforme defende Freud, por outro lado, em excesso, elas desumanizam os vilões ao

ponto de transformá-los em figuras monstruosas. De acordo com Julio Jeha, vícios (a

agressividade), pecados (a avareza) e crimes (o roubo e o assassinato) são exemplos de mal

moral, que “consiste na desordem da vontade humana, quando a volição se desvia da ordem

moral livre e conscientemente”; assim, quando alguém inflige sofrimento em uma outra

pessoa de maneira deliberada, ele ou ela se caracteriza como um monstro, que vem a ser uma

metáfora do mal moral.217 Complementando esse ponto de vista, Colin McGinn afirma que o

mal pode ser visto como a fealdade da alma, da qual o monstro atua como uma personificação

visível, mas que “[a]lguns humanos excepcionais assumem a posição de monstro por suas

próprias ações, e quando isso acontece, a aparência física deles é passível de tomar o aspecto

215 “Both are isolated loners, both hide in intricately compartmentalized dwellings and work-spaces that betray

an underlying vacancy and emptiness of soul, [...] both are disinclined if not incapable of displaying any overt

or normal degree of sexuality or even affection.” MACK, The Wonderful and Surprising History of Sweeney

Todd, p. 66.

216 FREUD, Sigmund. “O mal-estar na civilização” [1929]. In: Edição Standard Brasileira das Obras Completas

de Sigmund Freud, Vol. XXI. Rio de Janeiro: Imago, 2006c, p. 116.

217 JEHA, Julio. “Monstros como metáfora do mal”. In: JEHA, Julio (Org.). Monstros e Monstruosidades na

Literatura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010, p. 16-19.

121

do grotesco.”218 Esse é certamente o caso de Sweeney Todd, cuja aparência é bastante

estranha e ameaçadora, mas não exatamente da Sra. Lovett; contudo, levando-se em conta que

o monstro sempre esteve associado com a ganância e a gula, a transgressão deles, que consiste

em canibalizar suas vítimas219 com extrema crueldade para satisfazer sua fome pelo dinheiro,

é feia e repulsiva, e por isso se torna ainda maior e monstruosa.

A partir dessas considerações, vê-se que ambos os personagens transitam por três

estágios de vilania: o primeiro os caracteriza como indivíduos comuns que integram uma

sociedade progressista e civilizada, mas que, por alguma razão, se colocam à parte dela de um

modo suspeito; o segundo revela seus instintos mais primitivos, que vão contra as normas

estabelecidas pela civilização; o terceiro, por fim, evidencia a transgressão cometida por eles,

que de tão amoral e desumana os configura em dois monstros. Desse modo, pode-se concluir

que Sweeney Todd e a Sra. Lovett são vilões típicos do gótico urbano, que inspiram horror

justamente por mostrarem o caos da natureza humana por trás da aparente ordem do mundo

civilizado.

3.3.2 Tortas canibalísticas: o tabu e o abjeto

As tortas de carne humana preparadas pela Sra. Lovett são certamente um dos

elementos mais horripilantes de The String of Pearls. O canibalismo é visto como um ato

absurdo, que ultrapassa todos os limites da normalidade e da moralidade, e por isso, mais do

que um crime, constitui um tabu. De acordo com Freud, a palavra “tabu” tem dois sentidos

contrários, o de “sagrado” ou, alternativamente, “perigoso”, “proibido”, “impuro”.220

Exatamente por admitir duas acepções diferentes, o tabu provoca sensações ambivalentes no

indivíduo, exercendo nele atração e repulsa ao mesmo tempo.221 Ao longo da narrativa,

percebe-se que as tortas proporcionam um prazer intenso àqueles que as consomem, que

obviamente desconhecem a proveniência delas:

218 “[s]ome exceptional humans achieve the status of monster by their own actions, and when they do their

physical appearance is apt to assume the aspect of the grotesque.” MCGINN, Colin. Ethics, Evil, and Fiction.

Edição Kindle. Oxford: Oxford University Press, 1997, pos. 1961-1966.

219 O termo “canibalizar” é usado no contexto deste capítulo para se referir ao ato de abater seres humanos para o

consumo e ao de consumir carne humana. Dessa forma, as vítimas de Sweeney Todd e da Sra. Lovett incluem

as que são abatidas (as canibalizadas) e aquelas que consomem (as que canibalizam).

220 FREUD, Sigmund. “Totem e Tabu” [1913]. In: Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund

Freud, Vol. XIII. Rio de Janeiro: Imago, 2006d, p. 37.

221 Idem, p. 47.

122

A fama delas havia se espalhado por grandes distâncias, e muitas pessoas as

levavam para os subúrbios da cidade como um agrado para os amigos e parentes que

neles residiam. E elas bem que mereciam a reputação, essas tortas deliciosas; elas

eram dotadas de um sabor insuperável e inigualável; a massa era de uma delicadeza

só, impregnada de um aroma delicioso que não tem como ser descrito. E as

pequenas porções de carne contidas nelas eram tão tenras, com as carnes gordas e

magras tão artisticamente misturadas, que comer uma das tortas da Sra. Lovett era

uma tentação para comer outra, e muitas pessoas que vinham para o almoço ficavam

para a janta, gastando talvez mais de uma hora de seu precioso tempo e, assim,

pondo em perigo – quem dirá que não? – o sucesso de algum processo.222

Sweeney Todd e a Sra. Lovett são os únicos que resistem ao “encanto” dessas

iguarias; por estarem diretamente envolvidos na fabricação delas, as tortas lhes causam

profundo nojo:

– Ah, Sr. Todd – disse a dama –, como vai? Não o vemos há muito tempo.

– Faz um tempo; e como está, Sra. Lovett?

– Muito bem, obrigada. Aceita uma torta?

Todd fez uma cara horrível ao responder:

– Não, obrigado; foi muito tolo da minha parte, sabendo que viria aqui, mas

eu acabei de comer uma costeleta de porco.223

Já no último capítulo da penny

,

blood, porém, o efeito exercido pelas tortas se torna o

mesmo para todos: depois de se deliciarem com elas, e diante da revelação literalmente

indigesta de que os recheios de “porco” e de “vitela” das tortas são, na verdade, carne

humana, a reação dos clientes da Sra. Lovett é a seguinte:

Como a multidão se retraiu – que berro de agonia e de consternação ela soltou!

Cerca de quarenta escriturários ficaram terrivelmente enjoados, todos de uma vez só,

e como eles cuspiam as porções gelatinosas e pegajosas das ricas tortas que estavam

devorando. – Meu Deus do céu! Oh, as tortas! Que desgraça!224

[...]

Os jovens que visitavam a pâtisserie da Sra. Lovett, e que lá se deleitavam com suas

iguarias, não são mais jovens. Na verdade, todos já foram para a cova, exceto um,

222 “Their fame had spread even to great distances, and many persons carried them to the suburbs of the city as

quite a treat to friends and relations there residing. And well did they deserve their reputation, those delicious

pies; there was about them a flavour never surpassed, and rarely equaled; the paste was of the most delicate

construction, and impregnated with the aroma of a delicious gravy that defies description. Then the small

portions of meat which they contained were so tender, and the fat and the lean so artistically mixed up, that to

eat one of Lovett’s pies was such a provocative to eat another, that many persons who came to lunch stayed to

dine, wasting more than an hour, perhaps, of precious time, and endangering – who knows to the contrary? –

the success of some lawsuit thereby.” PREST, op. cit., p. 36.

223 “‘Ah, Mr Todd,’ said the lady, ‘how do you do? Why, we have not seen you for a long time.’

‘It has been some time; and how are you, Mrs Lovett?’

‘Quite well, thank you. Of course, you will take a pie?’

Todd made a terrible face, as he replied, ‘No, thank you; it’s very foolish, when I knew I was going to make a

call here, but I have just had a pork chop.’” Ibidem, p. 352.

224 “How the throng of persons recoiled – what a roar of agony and dismay there was! How frightfully sick about

forty lawyers’ clerks became all at once, and how they spat out the gelatinous clinging portions of the rich pies

they had been devouring. ‘Good gracious! – oh, the pies! – confound it!’” PREST, op. cit., p. 376.

123

que está muito, muito velho; mas mesmo agora, quando pensa em como apreciava o

sabor da “vitela”, ele estremece e se rende a uma dose de conhaque.225

Em confluência com os sentimentos de perigo e de impureza suscitados pelo tabu,

conforme apresentado por Freud, Julia Kristeva formulou o conceito do abjeto, que, nas

palavras da filósofa e psicanalista, diz respeito ao que “perturba a identidade, o sistema, a

ordem”, ao que “não respeita fronteiras, posições, regras”, “[a]o intermediário, [a]o ambíguo,

[a]o composto”.226 De modo a ilustrar o que é o abjeto, ela conjura a imagem do cadáver, a

representação máxima da fronteira entre a vida e a morte:

O corpo morto (ou cadáver: cadere, cair), aquele que fracassou irremediavelmente,

significa fossa, e morte; [...] o refugo e os cadáveres me mostram o que eu ponho de

lado permanentemente para viver. [...] Assim, eu me encontro na fronteira da minha

condição de um ser vivo. [...] Se os excrementos significam o outro lado da

fronteira, o lugar em que eu não estou e que me permite existir, o cadáver, o mais

repugnante dos dejetos, é uma fronteira que invadiu tudo. Não sou mais eu quem

expulsa; “eu” sou expulsa. [...] Privada do mundo, portanto, eu caio inconsciente.

Naquela coisa constrangedora, crua e insolente sob a luz solar intensa do necrotério,

naquela coisa que não tem mais referente e que portanto não significa mais nada, eu

vislumbro a queda de um mundo que eliminou suas fronteiras: esvaindo-se. [...] [O

cadáver] é a morte infectando a vida. Abjeto.227

O cadáver exposto por Kristeva e as tortas canibalísticas da Sra. Lovett são

equivalentes em muitos aspectos. Se o cadáver é um dejeto da vida, ou seja, o que resta

quando ela deixa de existir, as tortas, que são recheadas de cadáveres, também o são; porém,

por conterem pedaços de cadáveres, e não cadáveres inteiros, elas apresentam uma camada a

mais de abjeção, pois se tornam restos indefinidos de vários dejetos. A repulsa sentida pela

ingestão delas decorre não somente do fato de suas porções de carne terem vindo de seres

humanos, mas, sobretudo, do fato de que, ao serem transformados em objetos de consumo,

esses indivíduos terem tido suas identidades destruídas; assim, as pessoas que comem as

225 “The youths who visited Lovett’s pie-shop, and there luxuriated upon those delicacies, are youths no longer.

Indeed, the grave has closed over all but one, and he is very, very old, but even now, as he thinks of how he

enjoyed the flavour of the ‘veal’, he shudders, and has to take a drop of brandy.” Ibidem, p. 377.

226 “[Abjection is what] disturbs identity, system, order. What does not respect borders, positions, rules. The in-

between, the ambiguous, the composite.” KRISTEVA, Julia. Powers of Horror: An Essay on Abjection [1941].

New York: Columbia University Press, 1982, p. 4.

227 “The corpse (or cadaver: cadere, to fall), that which has irremediably come a cropper, is cesspool, and death;

[...] refuse and corpses show me what I permanently thrust aside in order to live. […] There, I am at the border

of my condition as a living being. […] If dung signifies the other side of the border, the place where I am not

and which permits me to be, the corpse, the most sickening of wastes, is a border that has encroached upon

everything. It is no longer I who expel, ‘I’ is expelled. […] Deprived of a world, therefore, I fall in a faint. In

that compelling, raw, insolent thing in the morgue’s full sunlight, in that thing that no longer matches and

therefore no longer signifies anything, I behold the breaking down of a world that has erased its borders:

fainting away. [The corpse] is death infecting life. Abject.” KRISTEVA, op. cit., pp. 3-4.

124

tortas se dão conta da fragilidade da própria identidade, e consequentemente, da própria vida.

As tortas são abjetas por representarem a contaminação da vida pela morte de um semelhante.

Transformar pessoas em comida é algo que está fora do sistema e da ordem em que o

mundo civilizado se organiza. O horror evocado pelas tortas da Sra. Lovett, portanto,

corresponde ao horror do tabu e do abjeto, que, nesse caso, se traduz justamente pela

profanação da vida humana.

3.3.3 A cidade: o submundo, a alienação, o estranho

Robert Mighall afirma que o gótico urbano representa o que a cidade – ou, melhor, a

civilização – bane ou se recusa a reconhecer,228 e complementa que “no início do período

vitoriano, as ideias sobre o centro e a margem se inverteram (aparentemente), quando

Londres, justamente o epicentro do mundo civilizado, se tornou também – e de forma

preeminente, um pouco mais tarde – um dos lugares sombrios da terra”.229 Em The String of

Pearls, Londres é retratada como um lugar composto por dois níveis, mas em vez de se

encontrarem lado a lado, tal como o centro e a margem, se dispõem literalmente um sobre o

outro; há, portanto, um nível que corresponde à superfície, e outro que se caracteriza como o

submundo.

A maior parte da ação do romance se passa na Rua Fleet e em seu entorno;230 e,

mesmo em um espaço tão limitado, ao longo da narrativa, percebe-se que Londres é agitada

por uma atividade comercial intensa e por um fluxo considerável de pessoas. Ao se referir à

Rua Fleet como o centro da imprensa popular da cidade, Mack descreve o local dessa forma:

[...] Londrinos de todas as condições sociais possíveis conviviam com esses mesmos

escritores e jornalistas; os clérigos a caminho da igreja de St. Paul ou

,

de outras

igrejas locais antigas e famosas passavam por homens de negócios que corriam de

um escritório para outro; fazendeiros, vendedores ambulantes, açougueiros e

comerciantes se esbarravam a caminho de seus estabelecimentos locais; prostitutas

exerciam seu ofício a qualquer hora do dia e da noite; advogados entravam e saíam

apressados do Temple e dos tribunais; socialites de todas as classes iam em direção

aos clubes e teatros populares do West End; os operários normalmente voltavam à

228 “The Gothic depicted what the city (civilization) banished or refused to acknowledge [...]”. MIGHALL,

Robert. “Gothic Cities”. In: SPOONER, Catherine; McEVOY, Emma (Eds.). The Routledge Companion to

Gothic. Oxon: Routledge, 2007, p. 54.

229 “By the early Victorian period, ideas of centre and margin were (ostensibly) overturned, as London, the very

epicentre of the civilised world, became also, and in time pre-eminently, one of the dark places of the earth.”

Ibidem.

230 “The area within which the action of the novel takes place is relatively tighly delimited to a specific stretch

extending roughly along Fleet Street from just beyond Chancery Lane in the west, to Fetter Lane in the east,

and encompassing Temple Bar, Bell-yard, and the Precincts of the Inner Temple to Temple Stairs on the river

Thames.” MACK, Sweeney Todd: The Demon Barber of Fleet Street, p. 283.

125

noite para suas moradias no East End da cidade – um cruzava o caminho do outro no

coração de Londres.231

A cidade é tão dinâmica, tão apinhada de pessoas e tão mesclada que se torna caótica

e claustrofóbica. Paradoxalmente, é nesse espaço de concentração populacional desmedida e

de movimentação ininterrupta que ela se estabelece como o epicentro da civilização. Essa é a

superfície de Londres, o lugar onde a sociedade se empenha para exibir normalidade e, assim,

pertencer ao mundo civilizado. Em contrapartida, o submundo é o espaço para onde a

civilização escoa o que a normalidade rejeita; é igualmente caótico e claustrofóbico, e, nele,

os indivíduos que não se encaixam totalmente nessa sociedade se permitem satisfazer seus

instintos mais primitivos e cruéis.

A palavra submundo tem uma ligação contundente com o crime e com o mistério. No

caso de The String of Pearls, o submundo é a esfera da marginalidade, mas também um

espaço físico, configurando-se como as passagens que conectam a barbearia de Sweeney

Todd, a pâtisserie da Sra. Lovett e as criptas da igreja de St. Dunstan, localizadas justamente

sob a superfície da capital inglesa – e é nelas que a linha de produção do mercado negro de

tortas se esconde. Após serem lançadas da engenhosa cadeira do barbeiro, as vítimas são

abatidas (se já não tiverem morrido por conta da queda), cortadas e descarnadas; depois, a

carne é transferida para a cozinha subterrânea da Sra. Lovett e disposta em pequenas porções

nas estantes; Jarvis Williams (ou melhor, Mark Ingestrie) prepara a massa, modela, recheia e

assa fornadas e mais fornadas de tortas; tão logo estejam prontas, elas vão para o balcão da

pâtisserie e são vendidas e consumidas instantaneamente; e, por fim, os restos mortais não

aproveitáveis das vítimas são depositados nas criptas da igreja.

A parceria macabra entre Sweeney Todd e a Sra. Lovett representa claramente os

primeiros brotos da ordem capitalista surgidos na Inglaterra nos séculos XVIII e XIX. Ao

discutir a relação entre a manipulação de cadáveres e o comércio, explorada como uma forma

de evocar horror na ficção de massa, Sally Powell afirma que The String of Pearls trata “da

relação entre o especulador ganancioso e o consumidor insaciável”, e que tanto o barbeiro

quanto a pâtissière “representam o capitalista imoral pronto para explorar os vulneráveis e os

231 “[...] Londoners of every possible social standing kept close quarters with those very same writers and

newspaper journalists; clerics on their way to St. Paul’s or to the other ancient and famous local churches

passed men of business hurrying to and from their city offices; farmers, vendors, butchers and retailers passed

through on their way to their nearby markets; prostitutes worked their trade at every hour of the day and night;

lawyers scurried in and out of the Temple and the law courts; socialites of every standing headed in the

direction of the nearby West End and its popular clubs and theatres; manual labourers typically returned in the

evenings to their dwellings in the city’s East End – all crossed one another’s paths at this very heart of

London.” MACK, The Wonderful and Surprising History of Sweeney Todd, p. 76.

126

ignorantes” cujo comércio ilegal “é impulsionado pela demanda do mercado”.232 De fato, a

ilegalidade do negócio empreendido por eles gera uma alienação observada não só em seus

clientes, que parecem não se importar com a proveniência das tortas desde que possam comê-

las e pagar pouco por elas,233 mas sobretudo em seus empregados, que desconhecem o fato de

serem meras peças de um esquema assassino. Tobias Ragg, por exemplo, ao ser contratado

como aprendiz, recebe os seguintes termos de seu patrão:

– Você deve saber – disse Sweeney Todd, e ele contorcia suas feições de um jeito

horrível enquanto falava –, você deve saber, Tobias Ragg, que é meu aprendiz agora,

que recebe de mim alimentação, roupa lavada e acomodação, com a exceção de que

não dorme aqui, que faz suas refeições em casa e que sua mãe, a Sra. Ragg, lava

suas roupas, o que ela deve fazer muito bem, sendo uma lavadeira no Temple e

ganhando um monte de dinheiro: quanto à acomodação, você fica aqui na barbearia

o dia inteiro bem confortável, claro. Então, você é ou não é um felizardo?

– Sim, senhor – disse timidamente o menino.

– Você vai ter uma profissão excelente, tão boa quanto a de um advogado, à qual sua

mãe me contou que te encaminharia, se uma certa fraqueza mental não o tivesse

desqualificado. E agora, Tobias, me escute, e guarde cada palavra que eu disser.

– Sim, senhor.

– Vou cortar sua garganta de orelha a orelha se você disser uma palavra do que se

passa nesta barbearia, ou ousar fazer qualquer suposição, ou chegar a qualquer

conclusão sobre qualquer coisa que você possa ver ou ouvir, ou pensar que vê ou

ouve. Agora preste atenção, eu vou cortar sua garganta de orelha a orelha, você

entendeu?

[...]

– E se algum cliente lhe der um centavo, você pode ficar com ele, de modo que se

você ganhar bastante deles, vai se tornar um homem rico; só que eu vou tomar conta

deles para você, e quando eu achar que você precise deles, vou deixar que fique com

eles. Corra e vá ver que horas são na igreja de St. Dunstan.234

232 “The String of Pearls focuses on the relationship between the greedy profiteer and the ravenous consumer

[…] Whilst Todd and Lovett […] represent the immoral capitalist ready to exploit the vulnerable and the

ignorant, it is made clear that their gruesome trading activity is propelled by market demand.” POWELL, op.

cit., pp. 50-51.

233 “So thoroughly seduced are they by the ‘magic’ of an industry that delivers hundreds of delicious and

affordable pies, so happy are they to fulfill their desire for the commodity, that they do not wish to question the

product’s origin or the integrity of its production.” Ibidem, p. 51.

234 “‘You will remember,’ said Sweeney Todd, and he gave his countenance a most horrible twist as he spoke,

‘you will remember, Tobias Ragg, that you are now my apprentice, that you have of me board, washing, and

lodging, with the exception that you don’t sleep here, that you take your meals at home, and that your mother,

Mrs Ragg, does your washing, which she may very well do, being a laundress in the Temple, and making no

end of Money: as for lodging, you lodge here, you know, very comfortably

,

in the shop all day. Now, are you

not a happy dog?

‘Yes, sir,’ said the boy timidly.

‘You will acquire a first-rate profession, and quite as good as the law, which your mother tells me she would

have put you to, only that a little weakness of the headpiece unqualified you. And now, Tobias, listen to me,

and treasure up every word I say.’

‘Yes, sir.’

‘I’ll cut your throat from ear to ear, if you repeat one word of what passes in this shop, or dare to make any

supposition, or draw any conclusion from anything you may see, or hear, or fancy you see or hear. Now you

understand me – I’ll cut your throat from ear to ear – do you understand me?’

[…]

127

Além de trabalhar sem qualquer remuneração ou benefício e ser ameaçado e

maltratado diariamente, Tobias não sabe que, enquanto ele está na rua executando tarefas

inúteis para as quais seu patrão o manda (tais como comprar algo para comer ou mesmo ver a

hora no relógio da igreja), Sweeney Todd elimina o cliente da vez; tampouco percebe que o

barbeiro só o contratou para não levantar suspeitas nas pessoas. Já Mark Ingestrie é

literalmente escravizado pela Sra. Lovett (e, consequentemente, também por Sweeney Todd);

ao ser admitido, ela lhe adverte:

– Bem, eu não vejo por que não fazer um teste com você, de todo modo, então se

quiser descer até a cozinha, eu te acompanho e mostro o que você tem que fazer.

Tenha em mente que só terá tortas para comer, a menos que queira comprar outra

coisa para você, o que poderá fazer caso arranje algum dinheiro. Não pagamos um

tostão, e você deve concordar também em nunca sair da cozinha.

– Nunca sair?

– Nunca, a menos que saia de uma vez por todas; se você optar por aceitar essa

situação nesses termos, pode ficar; se não, pode cuidar da sua vida de uma vez e

esquecer o assunto.

– Ai de mim, senhora, não tenho recurso algum; mas a senhora disse que já tem um

empregado.

– Sim; mas ele foi se juntar a uns velhos amigos, que ficarão bem felizes em vê-lo.

Então, diga: você está disposto a aceitar essa situação ou não?

– Minha pobreza e minha privação consentem, mesmo contra a minha vontade, Sra.

Lovett; mas, é claro, sei que saio quando eu quiser.

– Oh, é claro, nunca pensamos em manter ninguém por muito tempo depois que

começa a se sentir desconfortável. Já que está pronto, acompanhe-me.235

Ao perguntar à Sra. Lovett como as tortas chegavam à cozinha, Mark Ingestrie obtém

a resposta curta e grossa de que isso não era da sua conta; quando, enjoado das tortas e

cansado de viver aprisionado, se recusa a trabalhar, recebe recados ameaçadores de seus

algozes; diante das condições desumanas em que vive, ele, por fim, resolve investigar por

‘And if any customer gives you a penny, you can keep it, so that if you get enough of them you will become a

rich man; only I will take care of them for you, and when I think you want them I will let you have them. Run

out and see what’s o’clock by St. Dunstan’s.’” PREST, op. cit., pp. 4-5.

235 “‘Well, I don’t see why we should not make a trial of you, at all events, so if you like to go down into the

bakehouse, I will follow you, and show you what you have to do. You remember that you have to live entirely

upon the pies, unless you like to purchase for yourself anything else, which you may do if you can get the

money. We give none, and you must likewise agree never to leave the bakehouse.’

‘Never to leave it?’

‘Never, unless you leave it for good, and for all; if upon those conditions you choose to accept the situation,

you may, and if not you can go about your business at once, and leave it alone.’

‘Alas, madam, I have no resource; but you spoke of having a man already.’

‘Yes; but he has gone to some of his very oldest friends, who will be quite glad to see him, so now say the

word: Are you willing or are you not, to take the situation?’

‘My poverty and my destitution consent, if my will be adverse, Mrs Lovett; but, of course, I quite understand

that I leave when I please.’

‘Oh, of course, we never, think of keeping anybody many hours after they begin to feel uncomfortable. If you

are ready, follow me.’” PREST, op. cit., pp. 125-126.

128

conta própria o que realmente se passa naquele lugar, correndo o risco de ser morto a sangue

frio tal como o cozinheiro anterior. Ele só come tortas, mas não é de fato um consumidor, já

que não tem dinheiro para pagar por elas, e apesar de não fazer mais nada a não ser fabricá-

las, não sabe do que elas são feitas – menos ainda com que propósito elas são feitas.

Não obstante suas posições privilegiadas de comando, Sweeney Todd e a Sra. Lovett,

conforme Powell sugere, “são moralmente alienados da humanidade da carne cadavérica e do

trabalho com os quais eles lucram”:236 incapazes de enxergarem suas vítimas – que incluem

tanto as que foram mortas quanto seus empregados – como indivíduos, eles preferem vê-las

como mercadorias ou máquinas que podem aproveitar para prosseguirem com seus planos

mesquinhos de enriquecimento. A violência e a crueldade com que eles as tratam, aliás,

sinalizam um desprezo que não se limita somente às pessoas que escravizam ou assassinam,

mas se estende a toda a humanidade; ao desmembrar seus corpos e compartilhá-los com os

outros, eles espalham esse desprezo pela sociedade, contaminando-a com agressividade, com

o apetite pela morte e com o tabu.237

Inicialmente, a superfície correta e civilizada e o submundo criminoso e selvagem da

cidade de Londres se apresentam como dois espaços bastante delimitados em termos de

posição geográfica e também de valores morais, de modo que aparentam ser totalmente

heterogêneos. Entretanto, o crime bárbaro perpetrado por Sweeney Todd e pela Sra. Lovett

obedece a uma ordem cíclica, começando na superfície, mais precisamente na barbearia, onde

os clientes desaparecem, em seguida descendo para o submundo, onde se executa a parte mais

sórdida, e finalmente voltando para a superfície, quando os vestígios são apagados na

pâtisserie lotada de pessoas ávidas pelas tortas; vê-se, portanto, que ambos os níveis se

encontram envolvidos nas atividades escusas promovidas pelo capitalismo selvagem. Diante

dessa violação de fronteiras, Londres se torna um lugar inquietantemente perigoso e estranho

– o que remete a um dos conceitos de horror mais básicos do gênero gótico.

236 “[...] [Todd and Lovett] are morally alienated from the humanity of the cadaverous meat and the labour from

which they profit.” POWELL, op. cit., p. 53.

237 Em seu artigo que trata da violência representada na ficção de massa da era vitoriana, Jarlath Killeen faz uma

observação interessante sobre como o leitor receberia essa carga de tortura: “[...] whereas public and private

spectacles involving bodily disintegration and desubjectivity had been directed previously at ‘others’ [...] in the

Victorian period such attacks on subjectivity became more expansive and embraced everyone; rather than

articulating a hatred of others, the penny press articulates a hatred of everybody (including the reading self). In

witnessing representational acts of torture and violence on a weekly basis in the penny press, an extraordinary

violence directed everywhere and nowhere, at everyone and no one, the readers could imagine that they too

were being taken to pieces, that they too were human dirt and debris, and that human subjectivity itself was

being done away with in fantastical and terrifying ways.” KILLEEN, op. cit., pos. 1079-1084.

129

Figura 11. “Tremendous Sacrifice”, charge de George Cruikshank publicada em Our Own Times (1846).

Conforme enunciado por Freud, “o estranho é aquela categoria do assustador que

remete ao que é conhecido, de velho, e

,

em subgêneros que disseminavam histórias sobre crimes, horror e escândalos,

o que só fez aumentar o pânico moral na sociedade em relação à leitura de ficção. Um desses

subgêneros ficou conhecido como penny blood, tendo surgido sob a forma de narrativas

serializadas em periódicos semanais ou mensais publicados nas décadas de 1830 e 1840.

Essas narrativas eram produzidas em larga escala por editores cujos escritórios se localizavam

na Rua Fleet, o centro da imprensa inglesa, os mais proeminentes sendo Edward Lloyd,

responsável pela publicação de títulos como Varney the Vampire, or the Feast of Blood

(1845-1847) e The String of Pearls: A Romance (1846-1847), e G. W. M. Reynolds, autor de

The Mysteries of London (1844-1846), Wagner the Wehr-Wolf (1846-1847) e The Mysteries

of the Court of London (1848-1855).8 Por serem muito consumidas e apreciadas pela classe

6 BRANTLINGER, Patrick. The Reading Lesson: The Threat of Mass Literacy in Nineteenth-Century British

Fiction. Edição Kindle. Bloomington e Indianapolis: Indiana University Press, 1998, pos. 59.

7 Ibidem, pos. 54.

8 KIRKPATRICK, Robert J. From the Penny Dreadful to the Ha’penny Dreadfuller: A Bibliographic History of

the Boys’ Periodical in Britain 1762-1950. London: The British Library and Oak Knoll Press, 2013, pp. 69-73.

20

trabalhadora, essas narrativas eram tidas pela classe média vitoriana como um tipo de

literatura barato e de mau gosto, que apelava para o prazer mórbido das massas em ver

sangue9 e representava um entretenimento facilmente comercializável10 – daí o seu nome

depreciativo, que deriva de “penny”, em referência ao valor que custavam, e “blood”, em

alusão às cenas sangrentas contidas nelas.

A penny blood constituiu um subgênero bastante vasto e rico do romance. As críticas

direcionadas a ela na era vitoriana, no entanto, foram um dos fatores que mais contribuíram

para que permanecesse no esquecimento por tanto tempo. Muito dessa hostilidade se devia a

um conflito de classes: a classe média, que, com a classe alta, compunha a maior parte do

público leitor inglês até então, via a cultura impressa consumida pela classe trabalhadora

como uma ameaça à sua posição ideológica dominante, visto que ela se expandia de maneira

proporcional ao número de leitores recém-alfabetizados dessa classe. Além disso, levando-se

em conta que a leitura de ficção seria uma atividade suspeita, “[e]xaminar o conteúdo e o teor

de materiais de leitura se tornou [...] uma forma aparentemente simples de fazer uma

investigação social”,11 conforme apontado por Kate Flint. Ao passar pelo crivo da classe

média, a penny blood foi tachada de literatura marginal por seu estilo “indevidamente

melodramático e sensacionalista” para os padrões aceitos como “bons” e “respeitáveis” e

pelas histórias “psicologicamente nocivas” aos leitores mais suscetíveis. A proposta deste

capítulo, portanto, é resgatar um pouco de sua história, traçar suas principais características

formais e temáticas e tratar de sua relevância como uma categoria da literatura vitoriana que

deu origem ao que hoje se entende por ficção de massa.

1.1 Urbanização, alfabetização e o mercado editorial: três condições básicas

O surgimento da penny blood está significativamente ligado às transformações

socioculturais pelas quais a sociedade vitoriana passou, desencadeadas por fatores maiores,

principalmente políticos e econômicos, relativos à Revolução Industrial e ao imperialismo:

este permitiu que a Inglaterra expandisse seu mercado consumidor para outros territórios, e

aquela fez com que as grandes cidades se transformassem em centros urbanos

industrializados.

9 KILLEEN, Jarlath. “Victorian Gothic Pulp Fiction”. In: SMITH, Andrew; HUGHES, William (Eds.). The

Victorian Gothic: An Edinburgh Companion. Edição Kindle. Edinburgh: Edinburgh University Press, 2012,

pos. 1043-1048.

10 BRANTLINGER, op. cit., pos. 80.

11 FLINT, Kate. “The Victorian Novel and Its Readers”. In: DAVID, Deirdre (org.). The Cambridge Companion

to the Victorian Novel, Cambridge: Cambridge University Press, 2001, p. 18.

21

O crescimento das cidades se deveu não só ao ritmo acelerado de industrialização e

urbanização, mas também à grande migração de trabalhadores das áreas rurais para os centros

urbanos em busca de emprego. A população aumentou consideravelmente: o número de

habitantes subiu de 8,9 para 32,5 milhões em todo o país durante o século XIX;12 em 1851,

3,5 milhões deles moravam em Londres.13 Desse modo, a então maior capital do mundo se

transformou em um labirinto de ruas, avenidas e estradas, bem como de praças, pequenos

estabelecimentos comerciais e grandes fábricas. Alguns espaços eram mais nobres; outros,

mais “modestos”, e neles transitavam pessoas de todas as classes sociais.

Com a grande concentração de pessoas, não tardou para que a busca por

entretenimento e informação também acontecesse. No período vitoriano, vários passatempos e

formas de diversão surgiram para uma grande parcela da sociedade, tais como viagens (feitas

nas ferrovias recém-construídas, onde um grande número de mercadorias e de pessoas

circulava), turismo, teatros, salões de música, concertos, pubs e jardins.14 O acesso à

informação, por sua vez, foi de extrema importância para que a sociedade pudesse discutir e

procurar entender a série de mudanças que sofreu tão rapidamente:

Entre a vasta coleção de bens e materiais produzidos durante o começo agressivo do

industrialismo na Grã-Bretanha no início do período vitoriano, nenhum foi mais

largamente disseminado, mais instrumental para a vida cotidiana e mais essencial

para a formação da cultura industrial que a informação, pois junto com a grande

mistura de coisas que parecia fluir descontroladamente das fábricas britânicas, um

rio de conhecimento (e questões) sobre como o mundo funcionava percorreu cada

aspecto da vida vitoriana. Os sinais externos mais notáveis de uma mudança

material sem precedentes da era – máquinas a vapor, fábricas, ferrovias, urbanização

– denotavam transformações ainda maiores na maneira como as pessoas pensavam e

agiam. Noções sedimentadas sobre tudo, de gênero a nacionalismo, de classe a

religião, de propriedade a biologia, estavam abertas a questionamentos. Até mesmo

pressupostos sobre princípios básicos como espaço e tempo eram desafiados. As

pessoas não só estavam vivendo de forma diferente; elas estavam pensando, falando,

escrevendo e agindo de forma diferente. Elas estavam existindo de forma diferente.15

(grifos no original)

12 DAVID, Deirdre. “Introduction”. In: DAVID, Deirdre (org.). The Cambridge Companion to the Victorian

Novel, p. 5.

13 PICARD, Liza. Victorian London: The Life of a City 1840 – 1870. London: Phoenix, 2005, p. 73.

14 ELIOT, Simon. “The Business of Victorian Publishing”. In: DAVID, Deirdre (org.). The Cambridge

Companion to the Victorian Novel, p. 38.

15 “Among the vast array of goods and materials produced during the aggressive onset of industrialism in Britain

in the early Victorian period, none was more widely disseminated, more instrumental to everyday life, more

essential to the shaping of industrial culture than information. For along with the grand mélange of things that

seemed to flow unchecked out of British factories, a river of knowledge (and questions) about how the world

worked coursed through every aspect of Victorian life. The era’s most conspicuous outward signs of

unprecedented material change – steam engines, factories, railroads, urbanization – denoted even grander

transformations in the way people thought and acted. Received notions about everything from gender to

nationalism, from class to religion, from propriety to biology were open to question. Even assumptions about

such fundamentals

,

há muito familiar”. 238 O conceito deriva da palavra

alemã unheimlich, oposta a heimlich, cujas acepções diversas incluem, por exemplo,

“[í]ntimo, amigavelmente confortável; o desfrutar de um contentamento tranqüilo [sic] etc.,

despertando uma sensação de repouso agradável e de segurança, como a de alguém entre as

quatro paredes da sua casa” e “[e]scondido, oculto da vista, de modo que os outros não

consigam saber, sonegado aos outros”.239 Assim, o estranho se manifesta quando as barreiras

entre o que é conhecido – que inspira conforto – e o que é desconhecido – que causa medo –

se desestabilizam ao ponto de quase colapso.240 Complementando a definição freudiana,

Punter diz que

os limites entre o “heimlich” – o que é socialmente aceitável e explicável – e o

“unheimlich” – aquilo que está além dos limites da razão humana – nunca se tornam

claros, e somos convidados a aceitar uma versão dos fatos que é, estritamente,

“sobrenatural”, não relacionada à nossa experiência normativa, mas que sugere um

238 FREUD, Sigmund. “O ‘estranho’” [1919]. In: Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund

Freud, Vol. XVII. Rio de Janeiro: Imago, 2006a, p. 238.

239 Ibidem, pp. 240-241.

240 PUNTER, David. “The Uncanny”. In: SPOONER, Catherine; McEVOY, Emma (Eds.). The Routledge

Companion to Gothic. Oxon: Routledge, 2007, p. 130.

130

outro domínio, o qual talvez tenhamos vivenciado somente em sonho, em uma

assombração, em nossa percepção de algo que existe na nossa vida cotidiana, mas

que continua a nos fazer lembrar de algo arcaico, algo que, de fato, se encontra

dentro de nossa psique em um nível tão profundo que só o conhecemos na nossa

imaginação, apenas como algo que deixa sua marca enquanto continua a surgir e

ameaçar nossa vida cotidiana, mesmo que nos lembre de algo que, talvez, tenhamos

conhecido um dia em um passado remoto, sendo esse passado considerado histórica

ou psicologicamente.241 (grifo no original)

Uma das ocorrências do estranho mais conspícuas dessa penny blood está no fato de

que Londres, ao se tornar cenário de um episódio de canibalismo tão primitivo e atroz, se

revela um lugar incivilizado e alheio, pois encerra um perigo tão longínquo e surreal que os

cidadãos precisam pensar duas vezes antes de saírem nas ruas em atividades banais como

fazer a barba ou degustar uma torta de carne. Desse modo, Mack não se engana ao afirmar

que

[o] propósito de Todd [...] não é só despachar vítimas individuais na cadeira de sua

barbearia, mas ver toda a Rua Fleet e até mesmo a Grande Londres destruída em

uma conflagração cataclísmica. Todd pode ser representante da força consumidora

centrífuga da Cidade – da própria civilização –, ainda que também seja,

paradoxalmente, uma força cuja anarquia atávica absoluta, quando canalizada

criativamente, dá origem a cidades como essa principalmente.242

3.4 The String of Pearls: uma narrativa de horror ou de humor?

Em seu estudo sobre as penny bloods e suas herdeiras, as penny dreadfuls, E. S.

Turner comenta ironicamente que

[p]rovavelmente, seria possível encontrar um psicólogo para afirmar que o prazer

macabro com o qual gerações sucessivas devoraram [a história de] Sweeney Todd, o

241 “the boundaries between the ‘heimlich’ – the socially acceptable and explicable – and the ‘unheimlich’ – that

which lies beyond the bounds of human reason – never become clear, and we are invited to accept a version of

events which is, in the strict sense, ‘super-natural’, not relating to our normative experience but nonetheless

suggesting another realm which we have perhaps only experienced in dream, in haunting, in our sense of

something which exists in our everyday life but nevertheless continues to remind us of something archaic,

something which indeed lies within our psyche but at a level so deep that we know it only phantasmally, only

as something which leaves its imprint as it continues to surge and threaten our everyday lives, even as it

reminds us of something which, perhaps, we have once known but only in the remote past, whether that past be

considered historically or psychologically.” Ibidem, p. 131.

242 “Todd’s final aim [...] is not only to dispatch the individual victims in his barber’s chair, but to see the whole

Fleet Street and even Greater London destroyed in a cataclysmic conflagration. Todd may be representative of

the centrifugal, consuming force of the City – of civilization itself – yet he is also, paradoxically, a force the

sheer atavistic anarchy of which, when creatively channeled, gives rise to such cities in the first place.”

MACK, The Wonderful and Surprising History of Sweeney Todd, p. 67.

131

Barbeiro Demoníaco, resulta de um desejo que vem do fundo do coração de

qualquer homem de saber que gosto seu vizinho tem.243

Por mais absurda que seja a ideia de literalmente comer outra pessoa para uma

cultura civilizada – ideia que, conforme discutido anteriormente, é tida como repulsiva e

abjeta –, em The String of Pearls, o canibalismo e a violência estão presentes não só como

mecanismos de horror, mas também de humor. Note-se, por exemplo, o momento da narrativa

já referido aqui no qual Sweeney Todd expõe a Tobias Ragg os termos de seu contrato de

aprendizagem: ao ser ameaçado pelo barbeiro de ter a garganta cortada “de orelha a orelha”

caso o desobedeça, o menino responde:

– Sim, senhor, não vou dizer nada, não. Que eu vire torta de vitela da Sra.

Lovett em Bell Yard, senhor, se eu dizer uma palavra.

Sweeney Todd levantou de seu assento e, abrindo sua boca imensa, olhou para o

garoto por um ou dois minutos em silêncio, como se tivesse a firme intenção de

engoli-lo, mas não tivesse decidido ainda por onde começar.244

Embora a terrível verdade por trás das tortas só seja de fato revelada nos capítulos

finais do romance, ela é sutilmente prenunciada já em suas primeiras páginas e reforçada pela

reação bizarra e inesperada do barbeiro. Turner comenta que, “para os crédulos leitores da

época, a confirmação de suas suspeitas crescentes deve ter vindo como um choque

tremendo”;245 para os leitores contemporâneos, entretanto, cujas habilidades de leitura são em

geral mais desenvolvidas,246 a obviedade dessas passagens produz um efeito diferente,

aproximando-se da comicidade.

243 “Probably a psychologist could be found to assert that the macabre relish with which successive generations

have devoured the stories, stage plays and even radio plays and films of Sweeney Todd, the Demon Barber,

springs from a desire deep down in every man’s heart to know what his neighbour tastes like.” TURNER, op.

cit., pos. 495-502.

244 “‘Yes, sir, I won’t say anything. I wish, sir, as I may be made into veal pies at Lovett’s in Bell Yard if I as

much as I says a word.’

Sweeney Todd rose from his seat; and opening his huge mouth, he looked at the boy for a minute or two in

silence, as if he fully intended swallowing him, but had not quite made up his mind where to begin.” PREST,

op. cit., p. 5. Os erros de gramática e a tripla negação no trecho traduzido são propositais, de modo a reproduzir

a fala de Tobias.

245 “[t]o the unsuspecting readers of that day the confirmation of their mounting suspicions must have come as a

first-class shock.” TURNER, op. cit., pos. 520.

246 Considerando que o público leitor de penny bloods era composto quase exclusivamente de membros da classe

trabalhadora recém-alfabetizados em escolas e instituições cujos métodos de ensino ofereciam somente as

habilidades de escrita e de leitura mais básicas. Outra vantagem que os leitores contemporâneos têm sobre os

vitorianos é a de que muitos deles provavelmente já tiveram contato com a história de Sweeney Todd através

de outras versões, tais

,

as space and time were challenged. Not only were people living differently, they were

thinking differently, talking and writing differently, acting differently. They were existing differently.”

22

No entanto, para que a população tivesse acesso a entretenimento e informação, era

preciso um intermediador que lhe oferecesse meios para obtê-los, e quem cumpriu esse papel

foi a educação. Na era vitoriana, a educação em massa passou a ser uma das prioridades do

parlamento britânico, uma vez que validava a ideia expressa por reformistas liberais e

industrialistas de que ela era “vital para a capacidade da nação em manter sua liderança em

manufatura”16 e para tornar os trabalhadores mais produtivos e disciplinados.17 Além disso,

educar a população refletia a ideia de que a educação e o conhecimento têm o poder de

civilizar e igualar as pessoas, bem como capacitá-las para desafiar seus limites na vida,

aproveitar seus talentos e adquirir conhecimento útil; acreditava-se que, com educação, elas

circulavam e obtinham sucesso.18 O resultado disso foi o aumento dos índices de

alfabetização da população, em especial os da classe trabalhadora, a partir da implementação

da Lei da Educação Básica de 1870, que previa a construção de escolas nas áreas mais

carentes, caso a provisão voluntária fosse insuficiente, por parte de Conselhos de Educação

locais. Essas escolas em geral não ofereciam o currículo completo, mas pelo menos os alunos

aprendiam a ler e a escrever razoavelmente. Estima-se que, no final do século XIX, 97,2% dos

homens e 96,8% das mulheres da população britânica eram alfabetizados.19

O aumento da alfabetização fez com que o hábito da leitura se popularizasse não só

como forma de acesso à informação, mas também como entretenimento. Essa “nova função”

da leitura possibilitou certas mudanças na atividade editorial, que, no início do século, era um

negócio mantido por um grupo seleto de editores e livreiros tradicionais. Livros costumavam

ser artigos de luxo exclusivos para leitores ricos, que compravam romances novos dos poucos

CHILDERS, Joseph W. “Industrial Culture and the Victorian Novel”. In: DAVID, Deirdre (org.). The

Cambridge Companion to the Victorian Novel, p. 77.

16 “The views expressed by industrialists that mass education was vital to the nation’s ability to maintain its lead

in manufacture carried considerable weight in Parliament. A Bill which met many, but not all, of the League’s

wishes was drafted and introduced by W. E. Forster, and quickly passed.” PARLIAMENT. The 1870

Education Act. Página do Parlamento Britânico. Disponível em:

heritage/transformingsociety/livinglearning/school/overview/1870educationact/>. Acesso em: 07 de setembro

de 2012.

17 “[…] liberal reformers argued that a well-read proletariat would be more productive and law-abiding […]”.

Não obstante, Jonathan Rose havia afirmado anteriormente que, apesar da suposição de que a industrialização

demandava mão de obra alfabetizada, “in 1841 only 27.4 percent of male workers and 7.4 percent of female

workers held jobs where literacy was required or likely to be useful: and those proportions had risen to just

37.2 percent and 15.4 percent by 1891.” ROSE, Jonathan. “Education, Literacy, and the Reader”. In:

BRANTLINGER, Patrick; THESING, William B. (Eds.). A Companion to the Victorian Novel. Oxford:

Blackwell Publishing, 2002, pp. 33-35.

18 “[Educating the laboring population] has the power to civilize and level. It provides the means by which young

men and women can challenge the limits of their lots in life; it offers a way of making the best of one’s talents

and of acquiring ‘useful knowledge.’ […] With an education, one can move into circulation, make something

of one’s self.” CHILDERS, op. cit., pp. 85-6.

19 FLINT, op. cit., p. 19.

23

livreiros ou vendedores ambulantes espalhados pelo país ou faziam empréstimos de

bibliotecas ambulantes locais, pagando assinaturas anuais caras.20 Torná-los produtos mais

acessíveis e rentáveis dependeu de uma série de fatores, tais como a redução dos custos de

produção de papel e de processos de impressão (o que permitiu uma escala de produção mais

extensa), a construção de rodovias e a diminuição dos impostos sobre postagem (que

facilitavam o transporte de mercadorias).21

A crescente demanda por ficção sinalizava boas oportunidades comerciais, mas

também trazia riscos para empreendedores recém-estabelecidos no mercado, pois mesmo com

custos de produção reduzidos, o investimento inicial que a atividade editorial demandava era

alto.22 Em associação com escritores dispostos a publicarem seus textos, editores e livreiros

desenvolveram um método de especulação que consistia em lançar romances de gêneros

diversos e formatos de publicação específicos (o romance publicado em três volumes, como

se costumava fazer na época, e as edições em brochura, comumente conhecidas como

paperbacks e yellowbacks23, foram exemplos disso) e esperar para ver como o público em

geral os receberia; caso os leitores se mostrassem inclinados a adquiri-los ou expressassem

uma boa opinião sobre eles, esses romances e formatos eram mantidos e circulavam até que o

índice de leitura e os lucros declinassem24 – o que indicava que o público havia começado a

perder o interesse por eles. Foi a partir de experiências como essas que os romances

serializados começaram a ganhar cada vez mais espaço no mercado editorial. A serialização,

além de ter se apresentado como uma alternativa mais acessível e barata ao romance

publicado em três volumes, contribuiu para o estreitamento da interação entre autor e leitor:

romancistas populares como Charles Dickens e Wilkie Collins, por exemplo, escreviam ao

sabor das expectativas dos leitores em relação às suas histórias.25 A atitude desses e outros

20 MAYS, Kelly J. “The Publishing World”. In: BRANTLINGER, Patrick; THESING, William B. (Eds.). A

Companion to the Victorian Novel, p. 12.

21 Ibidem, p. 16.

22 Quanto a isso, Kelly Mays cita o exemplo de Sir Walter Scott, cujos romances – como Waverley (1814) e

Ivanhoe (1820) – tiveram tiragem e vendagem iniciais de dezenas de milhares de cópias: “When Scott’s

publisher, Archibald Constable, failed in 1826 for around £250,000, leaving Scott himself £120,000 in the red,

the very size of their debts revealed just how large the potential profits and the potential risks were in the high-

stakes of fiction publishing […]” Ibidem, pp. 12-13.

23 Enquanto o termo paperback se refere a edições de baixo custo, que eram encadernadas com capas flexíveis de

papelão coladas ao miolo do livro pela lombada, yellowback corresponde a romances baratos e versões

abreviadas de obras clássicas publicados durante o século XIX.

24 “[…] Victorian publishing came to be characterized by an odd blend of daring speculation and cautious

conservatism. That odd blend became most apparent in the way that successful innovations tended to become

orthodoxies: if a particular type of novel or a particular publishing format proved successful, then authors and

publishers tended to ride the wave until readership and profits ebbed.” Idem, p. 13.

25 Sobre esse costume, Patrick Brantlinger afirma: “The instances in which Dickens altered his novels in the

middle of their serial publication because of sales figures or, even more dramatically, because of fan mail or

direct reader response are evidence that, at least for himself and several other successful novelists, the relations

24

autores também indica uma tendência para a publicação de romances especializados, que

atendiam às preferências de grupos distintos, sobretudo do público leitor emergente – a

,

classe

trabalhadora.

A penny blood, portanto, foi resultado da confluência de três fatores básicos: a

alfabetização em massa, o desenvolvimento do mercado editorial e a busca por

entretenimento, compondo-se como um material de leitura intencionalmente voltado para a

classe trabalhadora. De certa forma, seu surgimento reflete um desejo dessa camada da

população de tomar parte na atividade de leitura, visto que, já naquela época, a literatura, em

seu sentido mais amplo, era vista como um valor essencial pela sociedade; nos meios

populares, entretanto, ela representava um domínio dificilmente acessível (provavelmente por

uma questão de dificuldade de linguagem), e embora se atribuísse muita importância a ela

enquanto atividade cultural, sua prática real ainda era limitada.26 Mas como ela dava conta de

se enquadrar na capacidade linguística e ao mesmo tempo satisfazer os gostos de uma

clientela tão vasta? Basicamente, expressando-se por meio de uma fórmula de linguagem

simples e agregando temas e estilos que despertavam o interesse desse grande público.

1.2 A forma da penny blood

Embora tenha se desenvolvido como um subgênero do romance, seguindo então os

padrões básicos dessa forma literária, a penny blood passou por algumas adaptações

estruturais para atenderem ao seu público alvo. Em um artigo intitulado “The Physiology of

‘Penny Awfuls’”, Walter Parke, crítico e humorista inglês que escrevia sob o pseudônimo

“The London Hermit”, relata de maneira um tanto irônica como ele foi apresentado a esse

subgênero do romance e descreve algumas de suas principais características, começando pelo

formato e pelo tema:

Uma “Penny Awful” é, ao que parece, um folheto de oito ou dezesseis páginas que

contém uma história contínua de caráter bastante sensacionalista e aventuresco,

decorado com ilustrações dramáticas e até mesmo horripilantes e vendido pela

pequena quantia de um penny por semana. A publicação continua na medida em que

se possa garantir uma circulação lucrativa, tanto mantendo o interesse da história em

si quanto pelo estímulo adicional de brindes na forma de ilustrações coloridas ou

between reader and writer could be dialogical, almost conversationally familiar.” BRANTLINGER, op. cit.,

pos. 237.

26 MOURALIS, Bernard. As contraliteraturas. Tradução de António Filipe Rodrigues Marques e João David

Pinto Correia. Coimbra: Livraria Almedina, 1982.

25

suplementos. Alguns adeptos o chamam de “Penny Dreadfuls”, mas “Awfuls” me

parece de longe o termo mais expressivo27

Antes de prosseguir, porém, torna-se necessário esclarecer um ponto: afinal, penny

awful, penny dreadful e penny blood são sinônimos ou designam três objetos diferentes cada

um? Essa é uma questão importante, pois a concomitância desses termos gera bastante

confusão e desacordo entre leigos e pesquisadores desse tipo de ficção, mas fornecer uma

resposta a ela é uma tarefa complicada, pois envolve generalizações equivocadas e pontos de

vista opostos. De maneira geral, penny blood se refere a uma determinada categoria de

histórias populares, e penny dreadful (bem como o sinônimo penny awful) a outra; da mesma

forma, a primeira constitui o objeto de estudo da presente dissertação, e a segunda, não.28 A

causa de toda a confusão em torno dessas duas categorias está no fato de que as diferenças

entre elas são sutis, mas ainda assim existentes.

Tal como foi dito anteriormente, as penny bloods circularam durante as décadas de

1830 e 1840 e tinham como seus principais difusores Edward Lloyd e G. W. M. Reynolds.

Elas continham histórias serializadas de horror e de crime com um apelo marcadamente

gótico (isso será abordado com mais detalhes na próxima seção) e eram destinadas sobretudo

ao público adulto da classe trabalhadora; entretanto, à medida que o interesse desse público

por elas diminuía e se voltava para os jornais dominicais e as revistas ilustradas semanais (que

ofereciam mais conteúdo pelo mesmo preço), as penny bloods começaram a ser apropriadas

pelos adolescentes recém-alfabetizados da classe trabalhadora como forma de

entretenimento.29 Essa transição de público leitor contribuiu para que editores como Edwin J.

27 “A ‘Penny Awful’ is, it seemed, a sheet of eight or sixteen pages, containing a continuous romance of a highly

sensational and adventurous character, garnished with striking and even horrifying illustrations, and retailed for

the small sum of one penny per week. The publication is continued as long as a paying circulation can be

secured, both by sustaining the interest of the story itself, and by the additional stimulus of gifts in the form of

coloured plates or supplements. Some adepts call them ‘Penny Dreadfuls,’ but ‘Awfuls’ seems to me by far the

more expressive term” The London Hermit (Walter Parke), “The Physiology of ‘Penny Awfuls,’” The Dublin

University Magazine, setembro de 1875, pp. 364-376 apud COLAVITO, Jason. “A Hideous Bit of Morbidity”:

An Anthology of Horror Criticism from the Enlightenment to World War I. Jefferson: McFarland, 2008, p. 168.

28 Alguns dos autores que escrevem sobre penny bloods e/ou penny dreadfuls citados nesta dissertação fazem

distinção entre esses dois termos e os utilizam de acordo com o que cada um deles significa, enquanto outros

empregam somente o termo penny dreadful para se referir às duas categorias de histórias. Visto que concordo

com essa distinção e considero as obras ficcionais selecionadas para esta pesquisa como penny bloods,

utilizarei esse termo; porém, nas citações, utilizarei o termo originalmente escolhido pelos autores,

especificando ou acrescentando a categoria a qual me refiro entre parênteses (no corpo do texto) ou colchetes

(nas citações).

29 “The adult audience for gothic and romantic instalment fiction, or the Edward Lloyd style ‘penny blood’, had

begun to drift away from mid century, with the advent of cheap Sunday newspapers and weekly illustrated

magazines now carrying serialized novels. ‘Naturally people who read such romances have ceased to take an

interest in them since they found that the penny weeklies gave them three or four times as much matter of the

same character for the same price’ […]. A form of entertainment recently abandoned by adults was to be

appropriated, and in the process transmuted, by a younger age cohort.” SPRINGHALL, John. “‘Disseminating

26

Brett e os irmãos George, William e Henry Emmett criassem um mercado de publicações

específicas para a nova clientela juvenil, e assim surgiram as penny dreadfuls, histórias de

crime e de violência com um tom mais aventuresco protagonizadas por bandidos, piratas,

salteadores ou simplesmente jovens indisciplinados e rebeldes que vagueavam pelo submundo

londrino – muitas vezes, esses personagens eram representados de forma heroica e

romantizada, como se fossem movidos pela injustiça ou por uma razão mais nobre que o puro

crime, e por isso, as narrativas que protagonizavam eram rechaçadas pela classe média como

uma exaltação da vida criminosa.

Apreciadas sobretudo pelos garotos, elas foram publicadas durante as décadas de

1860 e 1870 e incluíam títulos como Black Bess; or, The Knight of the Road (1863-1868),

Spring-heel’d Jack: The Terror of London (1863), The Wild Boys of London; or, The Children

of the Night (1864-1866), entre outros. O termo penny dreadful, no entanto, entrou em uso

somente na década de 1870, após ter sido cunhado pejorativamente por jornalistas e outros

ideólogos culturais da classe média30 para designar qualquer tipo de ficção barata lida pela

classe trabalhadora em geral, o que deu início à imprecisão relacionada a ele e ao termo penny

blood.31 A partir dessas informações,

,

vê-se que os elementos que distinguem essas duas

categorias são a época de publicação, o público leitor, o editor e o estilo (enquanto os enredos

da penny blood tendem para o horror gótico, os da penny dreadful tendem para a aventura).

Por outro lado, ambas se assemelham no que diz respeito à forma e às sensações que

causam no leitor, uma vez que a penny blood, tendo antecedido a penny dreadful, influiu no

modo como esta floresceu. Voltando para o relato de Walter Parke, ele informa que a penny

awful (aparentemente ele emprega esse termo de modo a englobar penny bloods e penny

dreadfuls) segue uma fórmula especial, revelada a ele por um escritor (que é fictício)

chamado O’Riginal:

Impure Literature’: The ‘Penny Dreadful’ Publishing Business Since 1860”. In: The Economic History Review,

New Series, v. 47, n. 3 (agosto de 1994), p. 568.

30 Ibidem.

31 Quanto a isso, John Springhall, um dos principais pesquisadores do subgênero penny dreadful, lista alguns

significados atribuídos a ele: “First, it is used as a general term of abuse for cheap papers or fiction of any

description written throughout the nineteenth and early twentieth centuries. Second, it is used to describe

highly coloured, criminal or Gothic penny-issue novels of the 1830s and ’40s, such as those issued by

publisher Edward Lloyd (1815-90) from Salisbury Square in weekly or monthly parts [penny bloods]. Third, a

more appropriate application of the term is to the successors of these novels – directed, from the 1850 onwards,

toward a more specifically juvenile market – culminating in the publications of the NPC of the 1860s. Fourth,

‘penny dreadful’ is just as often used as a label for penny magazines or the cheaper weekly boys’ papers

appearing from the mid-1860s onwards, mostly associated with Edwin Brett or the Emmett brothers. And a

fifth usage applies the term not only to the boys’ journals themselves, but also to the long-running weekly

serials they contained. These serials, if successful, were then published in separate weekly parts and later in

collected shilling volumes, the latter of which provides us with a sixth definition.” SPRINGHALL, John. “‘A

life story for the people’? Edwin J. Brett and the London ‘Low-Life’ Penny Dreadfuls of the 1860s”. In:

Victorian Studies, v. 33, n. 2 (inverno de 1990), pp. 226-227.

27

ela deve ser algo surpreendente, que faça com que [os leitores] esperem pelo

próximo número, mesmo que você tenha que interromper um capítulo no meio para

que ele caiba. Não importa qual seja o enredo, ou que você realmente tenha algum,

desde que os incidentes sejam sensacionalistas e um ar de mistério seja jogado aqui

e ali.32

Por isso, O’Riginal lhe diz, nem todo escritor é capaz de produzir penny awfuls, pois

como se trata de uma literatura comercial, é preciso ter habilidades especiais para escrevê-las

com sucesso, tais como a construção inteligente e certa genialidade original.33 A maioria dos

produtores de penny bloods (e de penny dreadfuls) era composta por hack writers, escritores

profissionais que produziam histórias de “baixa qualidade” em prazos curtos e que eram

pagos por palavra ou por linha; por isso, as narrativas costumavam ser extensas e levar anos

para serem concluídas. Devido ao grande volume de trabalho, eles se dedicavam a várias

séries simultaneamente, o que devia comprometer consideravelmente a “genialidade” da qual

O’Riginal fala. Quanto a isso, E. S. Turner mostra que o texto das penny bloods (e das penny

dreadfuls) nem sempre era construído de maneira inteligente:

A tarefa de editar e revisar penny dreadfuls [e penny bloods] parecia ser realizada de

maneira despreocupada. Não havia nenhuma tentativa de fazer com que uma parte

terminasse em uma pausa lógica na narrativa. Raramente havia qualquer tentativa de

construir um clímax, de modo a estimular o leitor a comprar o próximo número. [...]

[G]eralmente, as partes frequentemente terminavam no meio de uma frase de

explicação entediante e não havia “resumo do capítulo anterior” na parte seguinte.

Não era raro que as ilustrações remetessem à parte anterior ou à seguinte; às vezes

elas nem se relacionavam à história. Erros de ortografia eram quase tão abundantes

quantos os de gramática, que eram muitos. [...] A simplicidade extrema de estilo

passou a ser cultivada gradualmente – aquele estilo de frases curtas em pizzicato [...]

Os escritores da velha guarda desprezam essa adulteração literária, apontando que

algumas colunas da narrativa continham mais espaços em branco do que escritos.

Cada parágrafo consistia em uma frase única, e cinco de seis frases eram

bruscamente interrompidas. Um bom número de frases, de fato, continha um

substantivo, um verbo e mais nada. Às vezes não tinham nem verbo. Todas as

afetações, tais como dois pontos e ponto e vírgula, eram cruelmente removidas, mas

os pontos de exclamação eram utilizados em grande quantidade. A simplificação –

presumivelmente em benefício do público recém-alfabetizado e não (como alguns

afirmavam) para a conveniência dos autores recém-alfabetizados – era levada a um

nível sem precedentes. Duas possibilidades se apresentam: que o estilo de frases

curtas era uma economia de esforço deliberada dos escritores que ganhavam

consideravelmente menos de um penny por linha; e que às vezes a brevidade

32 “it must be something startling, so as to lead them on to take the next number, even if you have to cut a chapter

out of the middle to make it fit in. it never matters what plot you take, or whether you have any at all, so long

as the incidents are sensational, and an air of mystery thrown in here and there.” The London Hermit apud

COLAVITO, p. 169.

33 “My dear sir, Milton couldn’t write ‘Penny Awfuls,’ nor did he live in an age when literature was a branch of

commerce,” returned the O’Riginal. “There is a knack in ‘Awful’ writing as in everything else. It requires

special capacities to do it with success. The faculty of skilful construction is essential; but original genius is

rather in the way than otherwise.” Ibidem, p. 172

28

extrema dos parágrafos pode ser sido um recurso editorial desesperado de alongar

uma cópia que ficou muito curta para o espaço alocado.34

Conforme indicado no início desta seção, o artigo de Parke é pontuado de ironia,

funcionando dessa forma como uma crítica às penny awfuls, como prefere chamá-las. Ele

aponta, por exemplo, para os “efeitos indesejados” da leitura desse tipo de ficção, cuja

tendência moral gerava objeções porque as histórias continham cenas, incidentes e

insinuações licenciosas ocasionalmente; de acordo com ele, isso as tornava um tipo de

literatura “simplesmente absurda e pueril para leitores adultos de inteligência mediana” (nesse

caso, as penny bloods, que atendiam ao público adulto) e “potencialmente perigosa nas mãos

da juventude pouco instruída” (as penny dreadfuls e seu público juvenil), uma vez que

incentivava o desrespeito à lei, à ordem e aos deveres do dia a dia, fomentava expectativas vãs

e noções falsas da vida e mostrava imagens inverossímeis e sem o refinamento do romance

poético.35 Por fim, ele conclui seu relato com uma solução para o “problema” apresentado

pelas penny awfuls (e penny bloods): se não há como bani-las por lei, e se não se pode pôr

toda a culpa em seus autores, que trabalham para viver e que escrevem desse modo para se

adaptarem ao seu mercado-alvo, nem em seus editores, pois a literatura em geral vinha sendo

tratada como um comércio e não seria razoável esperar que as classes mais baixas de

comerciantes literários tivessem escrúpulos, e muito menos em seus leitores por seu mau

gosto, já que tinham sido apresentados somente a esse tipo

,

de literatura, a solução que resta é

34 “The task of editing and proof-reading ‘penny dreadfuls’ would appear to have been discharged light-

heartedly. There was no attempt to make an instalment end at a logical pause in the narrative. Rarely was there

any attempt to build up a climax, in order to stimulate the reader to buy the next number. […] [A]s it was, an

instalment frequently ended in the middle of a sentence of dull explanation, and there was no ‘summary of

what has gone before’ in the next instalment. It was by no means rare for the illustrations to refer to a previous

part, or to a future part; occasionally they bore no relation to the story whatever. Spelling mistakes were nearly

as copious as grammatical mistakes, and they were legion. […] Gradually extreme simplicity of style came to

be cultivated – that pizzicato, short-sentence style […] The old school of writers despised this literary

adulteration, pointing out that some columns of narrative contained more white space than black. Each

paragraph consisted of but a single sentence, and five out of six sentences were strangled at birth. Quite a

number of sentences, indeed, contained one noun, one verb and nothing more. Sometimes they did not contain

even a verb. All affectations like colons and semi-colons were ruthlessly purged, but exclamation marks were

used profusely. Simplification – presumably for the benefit of the only-just-literate public and not (as some

averred) for the convenience of only-just-literate authors – was carried to a pitch never seen before or since.

Two possibilities cannot be ruled out: that short-sentence style was a deliberate economy of effort by writers

earning considerably less than a penny a line; and that sometimes the extreme brevity of the paragraphs may

have been a desperate editorial device to spin out copy which had fallen short of the space allotted.” TURNER,

E. S. Boys Will Be Boys: The Story of Sweeney Todd, Deadwood Dick, Sexton Blake, Billy Bunter, Dick

Barton, et al [1948]. Edição Kindle. London: Faber and Faber, 2012, pos. 402-415.

35 “Simply absurd and puerile to adult readers of ordinary intelligence, they may be powerful for harm in the

hands of the uninstructed juvenility [...] [L]icentious scenes, incidents, and suggestions are sometimes to be

found. But, in other respects, and mainly by instilling in the youthful mind an antagonism to law and order, and

the duties of everyday life; by exciting vain expectations, and false notions of life, and giving highly-coloured

pictures with neither the value of truth nor the refining power of poetic romance, their effect cannot but be

baneful.” The London Hermit apud COLAVITO, op. cit., p. 180.

29

a disseminação da educação, não só em termos de utilidade e intelecto, mas também de

imaginação – como um escritor com habilidade e genialidade verdadeiras para escrever para

as massas sem recorrer ao horror, ao crime e às sensações, mas, em vez disso, combinar o

fascínio das penny awfuls com o estímulo à imaginação de maneira saudável e apresentando

um propósito moral.36

A penny blood, portanto, é um tipo de ficção que possui uma forma específica, com

uma linguagem mais simples, de modo a tornar a leitura mais fácil para seu público alvo; essa

adequação, porém, contribuiu para que ela fosse tachada de um tipo de literatura “inferior”,

sem mencionar os temas e os enredos comuns a ela, que envolviam crimes sangrentos e cenas

permeadas de horror.

1.3 Crime, escândalo, horror e a formação do gótico urbano

Apesar de constituir um subgênero específico, a penny blood se configurou como um

emaranhado de subgêneros do romance, visto que apresentava características de formas

diversas. A maioria dessas influências vinha de outros subgêneros que se tornaram populares

mais ou menos na mesma época em que as penny bloods surgiram, tais como o romance de

Newgate e o romance sensacionalista, enquanto outras pertenciam a fontes anteriores, como o

broadside e o romance gótico.

O broadside era uma espécie de panfleto muito difundido do século XVI ao XIX que

continha relatos de crimes, julgamentos, execuções e as supostas confissões de criminosos

condenados, geralmente acompanhados por uma ilustração do texto, e custava apenas um

penny.37 Era vendido durante execuções públicas, eventos que, por mais chocantes e

repulsivos que fossem, atraíam um grande número de espectadores. De fato, os vitorianos

mantinham um fascínio mórbido por sangue e violência que sobreviveu até mesmo à

proibição das execuções em 1868: o prazer de assistir à morte dos condenados foi revertido

para a leitura de histórias com uma boa dose de crime e de tortura. Além do próprio

broadside, havia o Newgate Calendar, inicialmente um boletim mensal de execuções

publicado em 1773 pelo diretor da prisão de Newgate em Londres, que acabou se

transformando em crônicas ilustradas descrevendo crimes terríveis e as punições violentas

infligidas aos seus perpetradores. Essas narrativas eram usadas à guisa de exemplo moral para

36 Ibidem, p. 181.

37 HARVARD LAW SCHOOL LIBRARY. Página da biblioteca da Escola de Direito de Harvard sobre os

broadsides. Disponível em: . Acesso em: 27 de fevereiro de 2015.

30

seus leitores, mostrando que havia uma punição severa para todo tipo de crime, mas o estilo

sensacionalista delas, que conferia um tom de aventura e de espetáculo aos relatos, acabava

sugerindo uma certa exaltação do crime e do criminoso.38

O Newgate Calendar, por sua vez, deu origem ao romance de Newgate, um

subgênero produzido nas mesmas décadas da penny blood. Seus enredos geralmente se

ambientavam no mundo do crime e se concentravam na vida de ladrões, salteadores e até

assassinos. O primeiro romance de Newgate foi Paul Clifford (1830), de Edward Bulwer-

Lytton, e, de acordo com F. S. Schwarzbach, se estabeleceu como um modelo para as obras

inseridas nesse subgênero:

Ambiente a história no século anterior; abra-a descrevendo um tempo incrivelmente

ruim; apresente uma criança pobre que seja órfã ou algo equivalente; faça com que

ela seja corrompida por uma vida de crimes; retrate vários covis e se possível um

esconderijo dentro de uma caverna; salpique o diálogo com gírias chulas; acrescente

uma reviravolta no enredo que envolva atos escusos cometidos pelos ricos

(geralmente, sem que se saiba, um parente próximo do protagonista); e conclua com

o personagem principal conseguindo, contra todas as probabilidades, demonstrar

verdadeira nobreza, casar com uma herdeira e se redimir até a última página.39

Alguns criminosos reais se tornavam protagonistas desses romances, como foi o caso

de Dick Turpin, um salteador que se tornou uma lenda no século XVIII e foi morto em 1739,

e de Jack Sheppard, um assaltante que foi preso várias vezes, fugiu na maioria delas e acabou

sendo enforcado em 1724.40 Muitos críticos viam essa transferência de figuras históricas para

a ficção como uma romantização do criminoso, principalmente quando havia um motivo

psicológico para seus atos ou quando retratavam-no como uma vítima da sociedade,41 e

acusavam seus autores de exaltarem outros comportamentos considerados tão imorais quanto

o crime, como a prostituição.

38 Sobre esse estranho paradoxo, Lyn Pykett afirma: “[…] much of the appeal of the various versions of the

Newgate Calendar to their first readers derived from the way in which they made a spectacle of ‘deviant’ or

socially transgressive behavior, and also of the violent and public manner of the punishment of such behavior.”

PYKETT, Lyn. “The Newgate Novel and Sensation Fiction, 1830-1868”. In: PRIESTMAN, Martin (org.). The

Cambridge Companion to Crime Fiction. Cambridge: Cambridge University Press, 2003,

Penny Bloods - O Horror Urbano na Ficção de Massa Vitoriana - Dissertação de Mestrado - Karina dos Santos Salles - Literatura (2024)

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